quarta-feira, 11 de abril de 2012

Mais um Corpo

Quem vai para a guerra sabe como é: gritos, comandos e sangue, muito sangue. Mesmo se você não for para o campo de batalha, você acaba vendo tudo de longe, além de ver os soldados voltando no fim do dia - alguns com membros faltando. Algumas pessoas tem medo de não conseguir mais comer carne depois de ver um boi sendo abatido, mas, vai por mim, ver uma guerra embrulha muito mais o estômago.

Eu mesmo nunca tinha ido para a guerra. Sou um cozinheiro, fui na "tropa de suporte", o nome bonito que dão para os tidos como inúteis e sem colhões pelos combatentes - mas, quando se tem família, filhos e mais de trinta anos, vale mais a pena ser tido como um verme pelos seu compatriotas e voltar para casa vivo do que marchar para a morte certa. Nunca tinha vestido uma armadura ou tocado numa espada. Nunca tinha pisado num campo de batalha, até o acampamento se tornar um campo de batalha.

Era uma carnificina. Eu não entendi como e nem quando - não entendo porra nenhuma de guerras - o exército inimigo reduziu as nossas tropas a frangalhos, pequenas dúzias de homens desordenados que mais corriam pela própria vida do que qualquer outra coisa. Quando eu me dei conta, os inimigos estava a menos de cinquenta metros de mim e estavam massacrando cada sobrevivente que viam pela frente - não interessava mais se era capitão, sargento, cabo, batedor, curandeiro, escudeiro, cocheiro, ou cozinheiro, o que interessava era amontoar corpos. Talvez as prostitutas fossem poupadas para mais tarde.

Minha mente berrava comigo ordenando que eu fugisse, obviamente, mas, minhas pernas decidiram não cooperar e se limitaram a tremer. Na verdade, não foram só elas, o corpo inteiro fazia isso. Era só o que eu era, um corpo vestido de avental tremendo. Até que um soldado resolveu me encarar e sorrir como um predador que encontrou a sua refeição.

Pela aparência, já não se importava mais em escolher suas vítimas: manchas de sangue pela armadura de couro e pela pele, suor pingando pelo queixo e escorrendo pelos braços e respiração fortemente ofegante. Provavelmente, ele só não caíra por exaustão graças à sede de mais e mais sangue. Mas, nenhuma impressão de um cozinheiro importava naquele momento. Só o que importava era que ele estava vindo em minha direção com a espada erguida.

Em poucos passos, ele já estava muito próximo de mim, ajeitando o cotovelo para trás e apontando a arma para mim.

Ele sorria como uma criança que maltrata uma pequena ave.

Catei o cutelo que usava para fatiar carne e legumes e girei na direção do estômago do indivíduo. Foi tudo muito rápido, rápido demais. Eu mesmo não acreditava. Já ouvi alguns bardos de tavernas baratas cantarem sobre o medo e a perspectiva de morte certa durante uma batalha, mas eu simplesmente não tive tempo de sentir isso. Quando vi, o soldado estava de joelhos tentando apanhar os intestinos e as tripas que escorriam numa generosa poça vermelha na grama. Não sei se ele tentou falar algo ou se foi algum som que sai dos homens enquanto eles morrem, só sei que ele grunhiu o que parecia ser o som de um diabo. E morreu na minha frente.

Deve ter sido nessa hora que eu me dei conta do que estava acontecendo e comecei a correr.

Não era muito diferente e nem melhor - provavelmente, muito pior - do que os outros fugitivos. Não tinha lógica ou coerência, apenas a fuga desesperada.

Muitos gritavam por socorro, imploravam por ajuda, mas não existia a opção de ajudar ninguém. Os que puderam ser ajudados, já estava longe a muito tempo. Quem havia ficado até aquele momento estava por conta da própria sorte e qualquer altruísta não duraria mais do que quinze minutos. Quem vê uma guerra de perto sabe que nenhum deus ouve as preces de ninguém. Se existe um deus que ouve alguma prece, ele é o deus da guerra, e eu duvido que ele forneça alguma clemência.

Na correria, pulando por corpos inconvenientes no meio do caminho, desviando de cabanas incendiadas e evitando focos nítidos de matança, um outro soldado me avistou e veio correndo contra mim. Não tendo para onde fugir, tive que pensar muito rápido e procurar alguma coisa que me ajudasse a matá-lo.

Por sorte, não muito longe, havia um caldeirão fervendo, provavelmente com algum cozido que estava sendo preparado. Corri até o caldeirão, adiando um pouco o meu encontro com o meu perseguidor, me posicionei do lado oposto dele e soltei o cutelo. O recipiente tinha mais que a metade da minha altura e estava fervendo e queimando o que tinha dentro. O soldado parou a menos de dois metros do caldeirão. Não aparentava nada de diferente do anterior, sangue, suor e respiração ofegante, como sempre.

- Acha que essa panela vai te proteger de alguma coisa?

Antes mesmo dele terminar de falar, eu juntei as duas mãos no caldeirão, peguei impulso com os pés e empurrei com toda a força que só um desesperado tem, derrubando litros de cozido fervente em cima do cidadão, que começou a gritar ainda mais alto do que os que pediam socorro, tombando no chão e arrancando pedaços da armadura de couro numa tentativa inútil de amenizar as queimaduras. Eu mal conseguia vê-lo de tanta fumaça que se espalhou ao seu redor.

- Não, não achei que me protegeria.

E voltei a correr.

Na verdade, já não fazia qualquer sentido ir para lugar nenhum. Eu estava cercado por todos os lados por carnificina. Eu já nem sabia para que lado estava indo. Nessas horas, a gente não pensa em nada. Pode até ser o instinto de viver, mas não é isso que passa na nossa cabeça. Não passa nada, apenas o coração batendo como um tambor e as pernas obedecendo o ritmo da marcha. E era isso que eu fazia. Com todos os pulmões, para uma direção indefinida, eu corria. Até que o mundo ficou preto.

Cai para trás com a cabeça latejando e um córrego de sangue se formando na minha testa. Tudo doía: meu rosto, meu peito, minhas costas, minhas pernas. E, então, eu vi o que acontecera. Vi um enorme escudo metálico a minha frente e um homem me olhando com seriedade. Era do exército inimigo, mas não era um soldadinho qualquer como os outros. Vestia uma armadura de metal e olhava com mais inteligência.

Catei a espada do morto mais próximo e me levantei - uma das curiosidades da guerra, você nunca fica desarmado.

Ele observou cada movimento meu. Não consegui decifrar sua expressão, provavelmente porque significava algum pensamento de guerreiro experiente e isto estava fora demais da minha realidade. Entender jovens ansiosos para contar quantos mataram durante o dia é fácil, entender um homem que já perdeu as contas é mais difícil.

A espada dele também não era uma qualquer. As dos outros soldados e a que eu segurava tinham cerca de meio metro de lâmina, a dele devia ter um metro e meio. Os combatentes mais exaltados gostavam de armas maiores, mas geralmente eram os mais desengonçados e desprotegidos, já que precisavam das duas mãos, logo, abriam mão do escudo. Esse homem, por sua vez, usava a espada maior que as comuns ao mesmo tempo que o escudo. Se eu estivesse agindo pela minha vida, saberia que não tinha mais chances. Mas, como eu estava agindo por não sei o quê, ergui a arma que não sabia usar.

A expressão dele simplesmente não mudou, talvez porque qualquer ação minha fosse insignificante ou porquê eu não estava sendo subestimado - uma opção bastante vaidosa, com certeza. Ele ameaçou girar a espada, eu estoquei com a minha e encontrei o escudo. Ele podia ter contra-atacado ali mesmo, mas não reagiu. Apontou a espada para mim, eu ataquei de novo e, mais uma vez, encontrei o escudo. Sem reação de novo. Percebi o quão óbvio estava sendo.

Decidi esperar pela ação dele com minha espada em guarda, pronto para um contra-golpe. Ele apenas me observou. Minha lâmina tremia de tanto que eu estava ansioso e ele inteiro permanecia parado, mal respirava, apenas me encarava nos olhos. Ficamos um tempo que pareceu uma eternidade naquela situação, cheguei a pensar que ele atacaria pelo tédio, mas, mesmo assim, não o fez. E eu não sabia porquê diabos ele não me matava logo.

Girei minha espada pelo lado e, antes de alcançá-lo, ele desferiu um golpe rápido como o bote de uma serpente e abriu uma ferida no meu braço que me fez soltar a espada. Gritei e segurei a ferida por reflexo. O corte nem havia sido tão profundo assim, talvez tenha sido o susto ou a minha fraqueza mesmo, sei que aquilo só reafirmava o quanto eu era patético.

Naquele momento, ele pareceu cansar da brincadeira e preparou um ataque de verdade. Foi a única ação nele que pude prever, a ação que é fácil de identificar em qualquer criatura: matar. Soltei minha ferida, catei a espada com a mão esquerda e levantei a guarda. Ainda inexpressivo, ele parou seu movimento e me observou. Eu não fazia a menor ideia do que estava fazendo.

Ele descreveu um arco horizontal com a espada, extremamente lento, e eu aparei com a minha lâmina. Ele fez outro, um pouco menos lento e eu esquivei para trás, num pequeno salto. Ele veio com um terceiro ataque lento, eu comecei a pensar em contra-golpear, mas ele rapidamente mudou a direção do golpe e perfurou a minha coxa com uma estocada.

Gritei, pulei para trás numa perna só, mas continuei de pé, mesmo querendo ceder. A expressão dele mudou muito pouco nesse momento, ficando menos sério, mas ainda indecifrável. Talvez porque ele viu que eu morreria lutando e não me rastejando pelo chão - não que eu fosse continuar lutando por honra ou orgulho, eu estava apenas agindo sem questionar nem a mim mesmo, tudo por algum instinto que me mandou fazer aquilo.

Ele voltou a preparar um golpe, quando ouvimos uma corneta. Na verdade, ele ouviu mais do que eu e pareceu estranhar - eu estava muito concentrado nele para me preocupar com qualquer som ao redor. Então, ele olhou para a direita, como quem tenta entender o que estava acontecendo e deu três passos para trás. Acreditei que ele estava distraído e dei um passo para investir contra ele, quando senti um puxão brusco na minha roupa e vi o mundo se tornando um borrão com várias cores e, quando me dei conta, estava montado num cavalo.

Um cavalo havia passado entre eu e o outro homem, disparado como uma flecha, e um braço me segurou pela gola e me arremessou na garupa. O mundo ainda girava quando me dei conta de que minha espada não estava mais comigo e percebi que o homem que me conduzia para fora da batalha vestia a mesma farda que meus colegas assassinados usavam. O cavaleiro ainda teve que golpear alguns soldados que tentavam parar seu cavalo ou acertá-lo no meio do caminho enquanto eu tentava entender o que estava acontecendo.

Aos poucos, compreendi: eu havia acabado de ser resgatado do campo de batalha e estava sendo levado para longe da morte certa. Foi quando meus filhos me vieram em mente e eu fiquei sinceramente emocionado sabendo que os veria antes de morrer. Uma lágrima escorreu, mas ninguém viu.

- Por hoje, você vive, soldado - disse o cavaleiro.

- Soldados não usam avental, senhor -, respondi, ainda inebriado.

- Não identifico soldados pelo o que vestem, mas pelo o que fazem. E sei que eles lutam até a morte, soldado.

Dane-se, eu ia ver meus filhos e era isso que importava.

Um comentário:

  1. Muito bom.
    Gostei demais, super vívido, detalhista e principalmente, convidativo.
    Leitura fácil, de fácil quadro mental.
    Parabéns querido.
    Bejos

    ResponderExcluir