segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Apenas uma Recompensa

Ajoelhada de frente para a porta, já havia analisado a maçaneta cinco vezes - nada de errado. Entretanto, o corpo decomposto e fétido o ao meu lado me dava um bom motivo para acreditar que havia alguma coisa na porta – mas, com certeza, não era a maçaneta. Resolvi investigar a fechadura. Examinei um pouco e percebi que havia algo de incomum nela. Abri minha mochila, peguei minha lupa e olhei mais de perto: havia um mecanismo por dentro. Minúsculo. Impossível desarmar, de tão minucioso, porém, possível evitar. Guardei a lupa, fiquei de pé e botei a mochila nos ombros. Com cuidado, segurando a maçaneta por cima, girei e deixei a agulha envenenada voar à vontade, longe de mim.

Abri a porta.

Um corredor vazio. Apostei, pelo menos, mais duas armadilhas nele. Um passo cuidadoso, nem mais e nem menos, e pus-me a observar a nova área. O teto era dividido em blocos de pedras, todos colados uns aos outros. Pareciam firmes – se fosse para algum desabar na minha cabeça, haveria algum distanciamento singular em alguma parte. Olhei para o chão de azulejo e fiquei desconfiada. Chãos de pedra são firmes e estáveis. Azulejo é mais sensível, perfeito para se quebrar ou para ativar gatilhos. Se a armadilha não estivesse no chão, seria ativado por ele. Olhei para as paredes de tijolos alaranjados. Óbvio o suficiente para até um guerreiro burro perceber: havia pequenos relevos circulares por todos os lados. Grandes demais para dardos, pequenos demais para flechas. Provavelmente virotes. Não seriam fortes o suficiente para matar alguém, mas fariam bons machucados. Por sorte minha e burrice de quem projetou aquela sala, não haviam compartimentos para virotes da altura dos meus joelhos para baixo. Simplesmente me deitei no chão e fui me arrastando. Meu corpo ativou a armadilha e eu pude ouvir o sopro fino passando acima de mim. Rastejei com cuidado, colada no solo e evitei toda e qualquer ameaça, nem um fio de cabelo meu foi arrancado pelos virotes. Após cerca de cinco metros, olhei ao meu redor, vi que nada mais me ameaçava e fiquei de pé. Estava de frente para a porta.

Analisei a maçaneta uma vez. Duas. Três. Quatro e cinco vezes, e nada. Peguei a lupa, olhei a fechadura por alguns segundos, alguns minutos, algumas dezenas de minutos, uma hora, e nada. Parecia limpo. Girei a maçaneta, ouvi um estalo abafado vindo do teto e, instintivamente, pulei para trás.

Um impacto grave e pesado na posição onde eu estava. Por menos de um segundo, uma coluna de concreto não me esmagou contra o solo. Respirei fundo, recuperando o fôlego, enquanto entendia, aos poucos, o que acabara de acontecer. Quase perdi a vida por burrice! Burra, burra, burra! Lembre-se: sempre olhar paredes e tetos antes de abrir uma porta. Não vou esquecer!

Logo, o bloco voltou a se erguer e se camuflar de teto novamente. Ajoelhei-me de frente para a maçaneta, analisei com o triplo da atenção de antes, encontrei o mecanismo, usei duas agulhas finas como fios de cabelo, mas rígidas como metal e desativei a armadilha. Me xinguei mais uma vez antes de continuar.

Atravessei a porta e encontrei outro corredor, dessa vez, com um baú no fundo. Procurei compartimentos que poderiam se abrir e lançar flechas ou balançar lâminas, mas nenhuma pista. Teto limpo. Paredes limpas. Chão suspeitoso. Empunhei minha espada curta e cutuquei o solo. Espetei num canto, forcei a ponta contra outro e, na terceira tentativa, perfurei o chão, que se desfez à minha frente, revelando um poço com espinhos. Uma queda de mais de dois metros de altura seguida por perfurações por todos os membros disponíveis - parecia uma morte saborosa. Eu estava separada do outro lado do corredor por cerca de três metros. Analisei as paredes do poço: pareciam realmente de pedra maciça por todos os lados, o que me indicava não haver nenhuma outra armadilha depois daquela. Satisfeita, peguei impulso e saltei até o outro lado do corredor.

Estudei o restante do corredor e nada parecia me ameaçar. Caminhei, cautelosa, até o baú. Ajoelhei-me. Logo pude perceber que ele estava grudado ao chão, ou seja, estava conectado a algo na sala. Olhei as dobradiças da tampa e pareciam mundanas. Olhei a fechadura e nada demais também. Peguei minha lupa e pus-me a estudar com mais precisão. Depois de alguns minutos analisando, pude ver que o mesmo dispositivo que destrancaria o baú, ativaria uma armadilha – o que, finalmente, parecia ser desafiador. Peguei minhas agulhas e comecei o trabalho de verdade. Cutuquei o fundo da fechadura, tentei girá-la por dentro e vi que o mecanismo acompanhou-a, ameaçando se ativar. Cutuquei o dispositivo e conclui que seria impossível destrancar o baú sem acioná-lo junto. Enxuguei o suor de minhas mãos para não perder a precisão e voltei para a fechadura. Ao redor do mecanismo, nada de diferente. Verifiquei o fundo da fechadura, procurando por algum mistério, mas não havia nada. Procurei algo a mais, alguma pista para desarmar a armadilha, mas ela era simplesmente perfeita, impossível de separá-la da fechadura. Foquei toda a minha mente naquele espaço mínimo, cessei a respiração e fixei meus olhos. Peguei minha lupa novamente e procurei por algo, mas nada. Olhei a fechadura por fora, olhei ao redor do baú, mas tudo era completamente estéril. Voltei para a fechadura, guardei a lupa, peguei as agulhas e fiquei imóvel por um tempo que não pude calcular até que uma possibilidade se fez berrar em meu cérebro. Passei uma agulha por dentro da fechadura, entre os mecanismos e pude sentir um mínimo relevo. Suavemente, tentei introduzir sua ponta dentro do fecho, mas escapuliu. Respirei mais uma vez, pisquei para deixar meu cérebro se ordenar e tentei de novo. Consegui enfiar a agulha, criando um pequeno vão, não mais do que um centímetro. Encaixei a outra agulha com cuidado no outro lado do fecho e empurrei de leve. Abrindo caminho aos poucos, introduzindo uma agulha e empurrando o dispositivo com a outra, um centímetro de cada vez, fui separando a armadilha da fechadura. Quando senti uma boa distância de três centímetros, encontrei elos dentro da mínima fenda aberta. Um por um, com a paciência de uma felina, desconectei os elos do interior da fechadura, até que todos estivessem inutilizados e, finalmente, destranquei o baú.

Confesso que só respirei alguns instantes depois de ouvir o estalo da fechadura, quando tive certeza de que ainda estava viva. O curioso de se focar unicamente em um objeto é que você abre mão da maior parte dos seus sentidos para aguçar unicamente o que é fundamental para aquela tarefa. Depois de concluída, os sentidos foram voltando aos poucos, latentes, como quando o sangue volta a correr pelas veias depois de uma câimbra ou voltamos a pensar melhor após uma dor de cabeça. Com o retorno do tato, senti-me encharcada de suor. Com o retorno da audição, ouvi minha respiração e meus batimentos cardíacos acelerados. Com o retorno do paladar, senti minha boca seca, tentando produzir saliva. Com o retorno do faro, senti o cheiro de velhice daquela sala que eu havia ignorado até então. Com a visão voltando a se ampliar, após tanto foco, voltei a enxergar o teto amarelo e o baú rubro.

Finalmente, com minha percepção de volta ao normal, abri o baú e coletei o tesouro que era meu por direito.

Um comentário:

  1. Muitos detalhes, é algo que atrai. Nesse conto isso é executado com maestria, a tal ponto de ser impossível parar a leitura na metade.
    Tem tempo que já está entre minhas leituras preferidas.
    Parabéns.
    Beijo Be.

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