sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Esperando e Sangrando

Era um bar qualquer numa estrada qualquer. Mal frequentado, obviamente. Um ou outro drogado metido a roqueiro dos anos 80 com uma moto de segunda mão, um ou outro criminoso de delitos suaves, uma ou outra prostituta que acabou de perder seu antigo ponto de programa e acabou aqui por azar e tipos do mesmo nível. E eu, que estava no grupo do um ou outro que não tinha onde cair morto. Depois de alguns meses, concluí que o bar não possuía frequentadores assíduos, todos eram passageiros. Fazia um frio agudo naquela noite e qualquer inocente que abrisse a porta me irritava profundamente. O homem que fazia vez de barman, garçom, caixa – e, provavelmente, proprietário – era um coxo que andava mancando de um lado para o outro vestindo um avental sujo, portando uma expressão carrancuda, uma cabeça careca e lisa e a bandeja ridiculamente erguida na mão direita, parecendo simular um funcionário de restaurante de madame. Tudo estava como deveria estar: tatuagens e sorrisos acavalados pelos cantos, música ruim no ambiente, o garçom desfilando seus passos mancos e desengonçados oferecendo qualquer porcaria para os clientes e eu no meu canto, invisível para todos.

Até que ele entrou pela porta. Primeiro, praguejei para mim mesmo ao sentir o frio. Em seguida, engoli minhas palavras e até cogitei rezar quando o reconheci.

Ele entrou vestindo uma calça jeans surrada e um casaco de lã encardido com capuz. Caminhou até quase o centro do bar e estagnou. Ficou completamente imóvel por alguns instantes, sem parecer nem respirar. Então, seus dedos tremeram por entre os fiapos da manga. Depois, o ombro direito fez um espasmo como se fosse uma câimbra. Em seguida, contraiu o estômago e curvou a coluna como quem tem uma ânsia de vômito e se apoiou numa mesa para não cair no chão. Um dos drogados achou graça e se pôs a rir e comentar abertamente com os outros enquanto o assistia se contorcer. A mão agarrada a mesa tremeu e a sacudiu numa vibração irregular e seus dentes amarelos se exibiram numa nítida expressão de dor. As lâmpadas do recinto piscaram, mas, ninguém deu bola. Um dos joelhos foi ao chão e um grunhido grave rangeu pelo bar. O rádio que tocava música ruim começou a chiar doentiamente, mas, os comentários e risadas abafaram os ruídos. Uma das prostituas pareceu sinceramente se apiedar e foi até ele, oferecendo-lhe ajuda. Pobre coitada.

Ele agarrou a mão da moça – que até era mais bonita que as demais – e a segurou com firmeza. Seu rosto se levantou por dentro do capuz e ele a encarou nos olhos. Ela, naturalmente, paralisou de susto e se deixou levar pelo olhar do maldito. Quando ela abriu a boca para emitir qualquer som, as lâmpadas piscaram mais uma vez e lentamente se apagaram, deixando tudo em penumbra. Porém, a escuridão foi além do breu natural. A escuridão se manifestou pelo bar como uma neblina que se espalha em cidades de grande altitude e impregnou a minha visão – e a de todos, acredito - com um negro vazio como o vácuo e o som do rádio se extinguiu deixando apenas os murmúrios de dúvida e de apreensão como som ambiente - até o drogado já não estava achando graça de mais nada. Aos poucos, o corpo e a mente foram se adaptando à realidade negra e algumas formas como mesas, cadeiras e pilastras foram se revelando. Ele e a prostituta ainda estavam no mesmo lugar, na mesma posição. Franzi meus olhos tentando entender a cena e vi o corpo da moça amolecer, bruxulear e tombar para trás. Sua queda provocou um impacto oco no piso de madeira e seu crânio pareceu reverberar com intensidade no chão. Olhei bem para o rosto da menina e juro que, apesar da escuridão, ela parecia completamente cinza e mórbida. Também juro que vi uma lágrima. Uma única lágrima escorrendo de um dos olhos e ouvi o suave eco da gota pingar no chão. Foi quando o caos começou.

Primeiro, um risinho agudo e feroz vindo dos cantos. Então, repentinamente, uma mão ossuda de dedos longos agarrou a cabeça do drogado e a girou, levando seu queixo até suas costas num estalo indigesto. E gritos. Gritos desordenados e desesperados de pessoas e gritos estridentes e vorazes de coisas. Os outros drogados se levantaram e correram em direção à porta. O primeiro foi interceptado por uma criaturinha magra e esguia, provavelmente do mesmo tipo da que assassinara seu amigo, que se jogou em suas costas e agarrou, arranhou, dilacerou e desfiou tudo que as garras encontraram sem nenhum alvo específico. Arrancou tufos de cabelo, pedaços da jaqueta, um bom bocado de carne e sangue dos ombros, até que um olho foi penetrado e um corte profundo na garganta foi feito e ele caiu no chão, enquanto o corpo desfalecido continuava a ser rasgado como um boneco de pano que sangra. O outro pensou que conseguiria alcançar a porta, mas teve sua perna subitamente puxada por algo que veio por de baixo de uma mesa. Seu rosto colidiu violentamente no solo e ele perdeu algum tempo recuperando a visão após o impacto. Quando voltou a enxergar, só conseguiu berrar. Alguma coisas se rastejou até ele, alguma aberração. Um ser com corpo volumoso e rugoso com braços finos e compridos, sem pernas e nem olhos rastejou até a perna do drogado e a puxou com uma força inesperada para debaixo da mesa. O drogado, por reflexo, tentou se segurar pelas tábuas do chão e pelos pés das cadeiras ao redor, mas não conseguiu se fixar em nada. Seus gritos aumentaram a cada puxada da aberração. Mais uma puxada e mais um berro. Então, quando ambos já não estavam mais no meu campo de visão, sons de carne se abrindo, tendões sendo arrebentados e os últimos berros da vítima ecoaram pelo recinto.

A única prostituta que havia sobrado demorou mais para reagir. Sua primeira ação foi tampar os ouvidos, comprimir os olhos e gritar histericamente. Quando cansou de não fazer nada enquanto o bar morria, se pôs a correr. Deu três passos, tropeçou no corpo da amiga e foi ao chão. Balbuciou idiotamente desculpas para a outra prostituta que jazia ao seu lado e começou a se levantar com dificuldades graças ao salto-agulha. Os joelhos ralados, a maquiagem completamente desfeita e borrada e a boca tremendo e contraindo em gemidos agoniados. Mal havia se posto de pé e arregalou os olhos: sua amiga também se levantara. O cabelo que fora loiro cobria seu rosto quase por completo. A postura que fora esbelta estava curvada. A mão direita que fora delicada portava uma navalha que eu duvido que estivesse lá desde o princípio. Cinza. Pele completamente cinza. A prostituta gritou e a outra respondeu com a navalha encravada no intestino e forçada para cima até a boca do estômago. Vermelho e cinza se misturaram enquanto a jovem emudecia e tombava.

O coxo foi a visão mais triste da noite. Eu não sei onde ele esteve durante toda a confusão, mas, não deve ter ido muito longe. Provavelmente foi o primeiro a se por a correr sem que ninguém se importasse com ele. Mas, agora, sobravam poucas vítimas e ele se tornou uma evidente. Estava coxeando nos seus passos mancos e desengonçados pelo bar mantendo a ridícula bandeja erguida acima de sua cabeça - acredito que ele simplesmente esquecera dela de tão habituado que estava em carregá-la. Ele mancou até onde a lagrima havia escorrido e teve seu pequeno pé deformado preso a algo. Vi seu corpo afundar para a direita e o vi fazendo força para sair do lugar inutilmente. Vi a bandeja finalmente sendo arremessada para longe e suas mãos gorduchas agarrando a coxa e a puxando, tentando tirar o pé de onde estava. Vi a criaturinha esguia, a aberração sem pernas e a prostituta incolor cercando o pobre coitado. Fechei os olhos e não vi mais nada - mas ouvi muita coisa.

Esperei pela minha morte de olhos fechados, sem emitir nenhum som. Esperei pela morte que não veio. Abri os olhos e o caos continuava. Um punhado de vítimas resistentes tentavam salvar suas vidas e tinham seus corpos desfigurados e dilacerados pelos pesadelos que festejavam no recinto. Vi um braço se apoiando no balcão e o vi se erguendo com dificuldades. Ele se esforçou para sentar numa cadeira e repousar o rosto numa das mãos. Esfregou sua barba rala e respirou fundo.

Parecia aliviado.

Enquanto as pessoas eram brutalizadas e os gritos ecoavam, ele respirava aliviado, como alguém que se vê livre de uma enxaqueca violenta. Seus ombros ondulavam, sua boca pendia entreaberta e seus olhos miravam algum ponto aleatório. Como quem descansa após muita agonia. Como quem encontra paz por um breve momento.

Então, os pesadelos começaram a retornar para onde vieram. As aberrações sem pernas rastejaram como vermes para debaixo das mesas e das cadeiras, as criaturas esguias saltaram de um ponto para outro, até se jogarem num canto consumido pelo breu e silenciarem suas risadas grotescas e a prostituta incolor caminhou até o meio do bar e simplesmente se deitou no chão. Minha visão voltou a enegrecer e mais uma vez fui desprovido de enxergar a menor silhueta ao meu redor. Então, ouvi os lamentos.

- Não! Ainda não! Foi muito rápido dessa vez! Por favor, ainda não!

E, aos poucos, minha visão voltou.

O bar estava uma lambança de sangue. Corpos abertos, manchas rubras pelas paredes e pelo chão, cadeiras e mesas despedaçadas, tudo em contraste a uma balada country do rádio que voltara a funcionar. E ele. Sempre ele. O homem maltrapilho que perambulava pelos meus pesadelos. A pessoa que melhor me conhecia nessa vida. Seu rosto estava novamente recoberto pelo capuz e ele estava novamente recoberto de silêncio. Ele se levantou, deu meia volta e saiu pela mesma porta que entrou.

E eu o segui.

Não sei por quê, mas, eu o segui.

Eu tive que seguir...

Um comentário:

  1. Gostei.
    A ânsia por saber o que acontece no fim, é sempre muito bem trabalhada por ti.
    Sempre termino de ler cheia de curiosidades. Enfim, repetindo o que falo cada vez que leio um conto seu, parabéns.
    Beijo.

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