sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Faça-me Mal

Depois de transcender a morte, a vida passou a parecer nojenta.


Eu caminhava pelas ruelas e becos a caminho do Centro para pegar a barca. O caminho não importava, se era vigiado pela policia ou infestado de indigentes, ninguém se atreveria a se meter comigo. No começo, mostrei as consequências aos desavisados por mim mesmo. Depois, a maioria já sabia que não era um qualquer passando por aqueles trechos. Então, conforme aprendi a usar melhor os meus dons, apenas minha presença bastava para repeli-los. Eu andava por onde bem entendesse.


Chegando ao Centro, segui o meu caminho à estação. Uma meretriz se reclinou, exibindo um decote toscamente exagerado, me convidando para uma “conversa” e elogiando o meu terno. Ao ser ignorada, pôs-se a gritar injúrias e dizer que ganhava mais em uma semana do que eu no mês. Sua sorte foi que eu já havia me alimentado naquela noite, por isso foi poupada - mas seria um prazer tê-la como refeição da próxima vez que nossos destinos cruzassem.


Mais a frente, um morador de rua pediu moedas para completar uma refeição. Era óbvio que o que ele queria era álcool, e que diferença faria? Peguei qualquer punhado de moedas na minha carteira e entreguei-o. Ele reclamou, dizendo que aquilo não daria para nada, quase fazendo meu sangue ferver pela insolência. Deixei-o falando sozinho enquanto esperava o sinal abrir para atravessar a rua. Doar aquelas moedas fez bem à minha pessoa. Colaborar com o vício alheio sempre é uma boa ação.


Chegando ao outro lado, um vendedor ambulante gritou muito próximo de mim, me chamando de patrão e me oferecendo softwares pirateados. Eu ignoraria, se não conhecesse a figura incômoda. Fingi que dispensava as ofertas e, ao passar ao lado dele, ouvi-o sussurrar que as encomendas já haviam sido encaminhadas - encomendas de outros produtos que ele também intermediava. Seguindo o protocolo, continuei no meu rumo como se nada tivesse acontecido.


Atravessei a roleta usando o meu cartão de passagens pré-pago e aguardei liberarem os portões. Chequei o relógio de pulso e me tranquilizei: tinha tempo de sobra para chegar à reunião. Provavelmente, muitos ao meu redor pensariam que eu estaria voltando para casa após um dia de trabalho, mas na verdade o trabalho estava apenas começando para mim. Provavelmente, a reunião levaria metade da madrugada, o que me daria tempo de cuidar de alguns projetos pessoais antes de voltar a dormir.


Os portões abriram e eu prossegui para a barca. Passei pela passarela junto da meia dúzia de passageiros, entrei na embarcação velha e precária e me sentei ao fundo, evitando companhia. Inconvenientemente, um homem sentou ao meu lado. Tentei ignorá-lo, mas o idiota esbarrou um cigarro aceso na minha mão, provocando uma pequena queimadura, me irritando profundamente.


- É proibido fumar aqui dentro - reclamei entre os dentes.


- Desculpe-me, senhor. Machuquei você? - Ele parecia um pouco sarcástico. Refleti se deveria ensiná-lo uma lição aproveitando que não tinha quase ninguém na barca, ou se deveria reservá-lo destino pior.


- Incomodou! Quem você pensa que é? Apague essa porcaria antes que me queime de novo - eu me segurava para não explodir de raiva. A queimadura passou a arder bastante depois de alguns instantes.


- E qual diferença faria pra você?


Observei-o por um instante.


- Está me provocando?


Ele tragou o cigarro lentamente, parecendo saborear a fumaça entrando e saindo.


- De forma alguma. Realmente não imagino que diferença esse cigarrinho faria a você. Poderia me esclarecer?


Minha mão inteira ardia até o meu pulso.


- Você com certeza não sabe com quem está falando.


- Sei melhor do que você pensa.


Quase paralisei com a resposta inesperada.


- Ah… Não me diga que é um caçador - debochei, abrindo um sorriso e exibindo minhas presas através dos meus lábios semiabertos. - Vai puxar uma pistola e tentar me eliminar aqui mesmo?


- Não sou um caçador. Não vim armado. Você não respondeu a minha pergunta ainda. Esse cigarro faria diferença pra você?


- Eu poderia te acorrentar e te alimentar de cigarros até você morrer lentamente, seu verme.


- Não é o seu padrão. Não sou estudante, já passei dos vinte e um anos e você não é tão paciente assim.


- Quer brincar de dialogar antes do confronto, caçador? Que charmoso, quase poético. Mas não se preocupe, esses estudantes não fazem falta à sociedade. Já estão perdidos de qualquer forma, eu apenas aproveito eles para mim.


- Se sente vingado com isso?


Ergui uma sobrancelha em interrogativa.


- Vingado do rapaz que bateu em você e roubou o seu lanche (e, às vezes, o dinheiro de passagem também) no colégio até o seu terceiro ano e você nunca teve colhões pra enfrentá-lo, até se tornar um sanguessuga maldito e passar a se alimentar desse tipo de valentão?


- Ora, ora, estudou direitinho. Pena que nada disso vai impedir a sua morte.


Ergui meu braço para agarrá-lo pela traqueia, mas senti meu corpo mole e impreciso. Ele aproveitou e enfiou o cigarro com vontade na minha mão erguida, queimando intensamente dessa vez.


- Já que não respondeu, eu respondo por você. Dentro desse cigarro tem uma agulha envenenada, obviamente que o veneno está só na ponta acesa e não no filtro. De qualquer forma, só faz efeito na pele ou no sangue, inalar não causa nada. Esse veneno causa uma leve dormência em quantidades mínimas e um completo relaxamento muscular numa dosagem pequena. Uma seringa cheia pode causar sequelas num boi. Sei que você não é dos mais resistentes, mas garanti uma dosagem boa, sinta-se lisonjeado antes de morrer. De novo.


Meus ombros despencaram e eu senti minha cabeça recostar involuntariamente na poltrona. Tentei me levantar, mas minhas pernas mal se moviam. A raiva fulminava por dentro, mas era impossível expô-la. Pensei em gritar, chamando-o de assassino, mas minha cabeça ficou zonza e pesada. Mal conseguia dosar minha respiração.


- Essa é a falha de vocês, querem manter as aparências e se descuidam nos lugares mais óbvios, tipo no meio de uma baía. Você fez tantos contatos e nenhum deles pode te salvar agora - ele transitava entre a seriedade e o divertimento. - Há quanto tempo você entrou pra família? Nem dez anos e já se acha alguma porcaria. Obrigado pela sua idiotice, graças a ela, as dezessete famílias que perderam seus filhos serão vingadas, mesmo sem saber disso.


A barca deu um solavanco e eu quase caí no chão sem conseguir me segurar. O homem me pegou pelo ombro e me trouxe para perto dele, fingidamente amigável.


- Vem cá, amigão, deixa eu te dar uma ajudinha.


Ele puxou o meu braço pelo ombro dele e me ergueu sem dificuldades.


Nunca senti tanto ódio. Antes de transcender a morte, eu sentia medo. Depois, aprendi a transformar tudo em desprezo. Ódio era algo pouco usual até agora. Fúria se tornara comum, mas não o ódio - quando você elimina o motivo da fúria, não há razão para odiá-lo. Até ter uma década de poder escorrendo pelas mãos sem poder reagir. Por fora, eu era um corpo embriagado pela droga, enquanto que por dentro eu era um incêndio de cólera. E não podia fazer nada, apenas ser carregado pelo meu assassino.


- Como deve ser morrer e continuar vivo? Foi doloroso? Agoniante? Você viu a luz no fim do túnel? - Ele brincava, contendo o deleite enquanto caminhava comigo para a saída lateral da barca. - É como se afogar? Bom, se você não sabe como é se afogar, vai descobrir agora. Aproveita e lembra como é beber água, como as pessoas normais. As vivas, sabe? Só que dessa vez, não tem nada depois do afogamento. Foi um bom papo, amigão.


Estávamos na beirada da grade de segurança. A água corria forte e estávamos longe de qualquer terra firme. Meu corpo afundaria e apodreceria no fundo, sem que eu pudesse fazer nada. Eu odiava assumir aquilo, mas o meu fim havia chegado.


- Seu… Caçador… Filho da… - Foi tudo que consegui balbuciar.


Ele ficou sério e me encarou por um tempo.


- Eu não sou um caçador. Sou um juiz.

E me empurrou na água.


7 comentários:

  1. Parabéns, Bê.
    A espera por um conto novo valeu a pena.
    Otimo conto.

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  2. Adorei!
    Foi como te ver sem ser você.
    É muito envolvente, forte... intenso. A sensação estranha de proximidade e distância do conto em si é a parte mais gistosa.
    Parabéns, Bernardo!

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  3. Muito envolvente. Gosto desse texto tanto quanto do Aberração na coleira, o personagem principal é o máximo.
    Adorei, parabéns.
    Sou sua fã!

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  4. Acho que a demora ao ler esse conto, me fez saboreá-lo de maneira mais especial. Lembro-me quando eu li a primeira vez, há alguns anos, o aberração na coleira, as sensações curiosas que me causaram, inclusive por não ter familiaridade com o tipo de literatura. Ver o amadurecimento e o desenvolver da continuação foi bastante surpreendente, além de me ver mais envolvida com a história e mais curiosa e ansiosa com o desfecho.

    Gostei de verdade. Poderia colocar milhões de elogios clichês, mas não preciso disso.
    Gostei mesmo, mesmo, mesmo.

    (E um comentário engraçadinho: Você está passando mais tempo no centro trabalhando do que em casa. Pelo menos está te rendendo inspiração e bons contos! Muito pontual a sua descrição do centro. Adorei.)

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  5. Brilhante :) Gostei muito do fechamento. Você melhorou muito, e o contraste com os primeiros contos é gritante.

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