-
Rezando para o Deus dos brancos de novo!?
Era
noite, eu estava de joelhos em silêncio com as mãos unidas encostadas em minha
testa quando fui interrompido rispidamente. Respirei fundo e me mantive
concentrado. Não levei mais do que alguns segundos para terminar minha oração,
fiz o sinal da cruz e me levantei, encarando o meu irmão de quilombo. Ele era
um banto, uma etnia do sul do nosso continente natal, tinha o corpo bem
definido, postura altiva, altura mediana e nenhum carisma para lidar com os
outros quilombolas. Por eu ser um zulu, a maioria dos brancos acreditava que
éramos da mesma etnia, mas era possível ver diferenças bem delineadas, além de
eu ter um palmo a mais de altura do que ele.
- O que
quer, Jerônimo? - perguntei. Ele levantou o dedo em direção ao meu rosto e
engrossou ainda mais o tom de voz.
- Já
mandei não me chamar por este nome maldito! O quilombo está cheio de problemas
e você está ai ajoelhado para o Deus dos brancos!
-
Desculpe, Oyó, mas não é hora para discutirmos.
- Ah,
mas para reverenciar o Deus deles é hora?
- Eu só
estava pedindo proteção aos nossos
orixás.
-
Mentira! Você vivia ajoelhado na frente daquele santo branco, em cima de um
cavalo branco, vestindo aço branco! Aposto que era para ele que você estava
rezando!
- Sim,
era. Mas, por que você acha que os santos e os orixás são entidades diferentes?
- Eu
adoraria que você falasse isso para um escravista! Ele chamaria de "heresia"
e te queimaria numa fogueira! Droga, Ifé, te deram o maldito nome de um santo e
você acha que pedir alguma coisa a ele vai funcionar? Nem os nossos nos ouvem
mais!
- Não é
verdade, eles ouvem sim. Enfim, não acho que você veio aqui criticar a minha
fé, não é? O que quer?
- Os bandeirantes
estão cada vez mais perto. Eles nos rastrearam depois da última caravana que
assaltamos e logo vão estar cuspindo fogo em nós com as armas mágicas deles. Eu
disse que não valia à pena atacar aquela caravana!
-
Libertar quinze irmãos vale à pena.
- Vale
à pena libertar quinze e deixar nossos cinquenta em risco? Droga, Ifé, vamos
ter que mover o quilombo inteiro e migrar por dias, ou até semanas para não
sermos encontrados! Até quando vamos viver assim?
- Até o
fim. Só queremos viver e os homens brancos não podem nos tirar esse direito. Tenho
fé de que podemos viver nessas terras da nossa forma.
- Do
que você entende de fé? Agora a pouco chamou um santo branco de orixá.
- Não
vamos voltar a essa discussão, até porquê...
Um
barulho interrompeu nossa discussão. Um barulho de fogo mágico. Entreolhamo-nos,
assustados. Era evidente que estávamos sob ataque.
- Reúna
os quilombolas e fuja para o oeste! Eu atraso eles! - ordenei e pus-me a
correr.
- Não
mesmo! Mande outro fugir, eu fico também! - ele rebateu.
Corremos
até o acampamento. Eu parei para organizar os fugitivos enquanto Jerônimo
apanhou dois machados de caça e continuou avançando em direção ao som do fogo
mágico. Tudo era caos, alguns corriam para direções aleatórias, mulheres
agarravam as crianças e choravam e alguns poucos tentavam reunir grupos.
-
Dingane, Ulundi, Bapedi! Reúnam vinte quilombolas cada e fujam para oeste! Eu
vou atrasar os bandeirantes e encontro vocês depois!
Os três
me ouviram e puseram-se a gritar e convocar quem conseguiam. Aos poucos, a
confusão foi ganhando ordem e logo o acampamento seria abandonado.
- Que
Oxalá os guie - permiti-me uma breve prece e corri para a direção em que
Jerônimo havia ido.
Depois
de percorrer cerca de quarenta metros de mata fechada, pude avistar os
invasores. Os brancos já haviam abandonado a discrição e começavam a avançar com
armas erguidas, prontos para matar. Subi numa árvore e aguardei em silêncio a
aproximação. Somente naquele grupo, eram dez homens, além dos outros comboios
afastados. Eu não tinha opção senão lutar. Enquanto me preparava, palavras
vieram em minha mente. Palavras que, há pouco, eu mesmo orava.
Chagas abertas,
Sagrado Coração todo amor e bondade, o sangue do meu Senhor Jesus Cristo, no
corpo meu se derrame hoje e sempre.
Mantive o silêncio enquanto o grupo passava por entre a
árvore onde eu estava. Depois de três homens terem passado, me joguei em cima
de um deles.
Ainda no ar, soquei a cabeça do primeiro bandeirante que
caiu desacordado na grama. Os sete que os seguiam se alarmaram, mas os dois que
estavam a frente ainda se viravam para ver o que havia acontecido. De nada me
serviria a arma mágica que o desacordado tinha em mãos, então, desembainhei a
fina espada que ele levava na cintura. Os homens apontaram as cuspidoras de
fogo e eu me joguei atrás da árvore, ficando entre os dois invasores da
vanguarda e o tronco, protegido dos disparos. Os dois se espantaram ao me ver,
o que me deu tempo para atacar. O primeiro não teve tempo para reagir e teve o
estômago perfurado pela minha lâmina. O segundo ergueu a arma desajeitado e
disparou contra qualquer direção, inofensivo. Girei a espada na horizontal e
abri sua garganta, encerrando sua vida. Mais um disparo estourou no ar e, dessa
vez, senti um calor feroz nas minhas costas. Os bandeirantes da retaguarda
chegavam.
Eu andarei vestido
e armado com as armas de São Jorge. Para que meus inimigos tendo pés não me
alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me enxerguem e nem
pensamentos eles possam ter para me fazerem mal.
Levei a mão às costas, instintivamente, para segurar o
ferimento, mas encontrei a minha pele lisa, sem perfuração. Eu conhecia as
armas mágicas, sabia que elas podiam matar com um único ataque, mas meu corpo
se encontrava ileso.
Armas de fogo, o
meu corpo, não o alcançarão.
Levantei-me e encarei os brancos. Mais dois disparos
atingiram meu o ombro e o meu abdômen e
tudo que fizeram foi provocar calor. Calor que logo se voltaria contra eles.
- É um bruxo! É um bruxo! As armas de fogo não o atingem!
- Então, use as armas brancas, seu supersticioso idiota.
Facas e lanças se
quebrarão sem ao meu corpo chegar.
Três sacaram lâminas enquanto cinco decidiam se imitariam
seus amigos ou se continuariam com as armas mágicas. O primeiro que tentou me
atacar recebeu uma estocada no tórax e tombou no chão, morto. O segundo girou
um facão duas vezes, me obrigando a recuar enquanto esquivava, mas teve a arma
aparada pela minha no terceiro ataque. No momento em que nossas armas se
cruzaram, a dele trincou e rachou. Seus olhos se arregalaram enquanto seu facão
se desfazia no ar. Desarmado e apavorado, ele deu meia volta e tentou correr,
mas recebeu minha espada na perna esquerda e tropeçou em direção ao solo. O
terceiro aproveitou minha distração e tentou encravar seu facão em minha
costela, porém, pareceu ter atacado uma placa de aço impenetrável. Incrédulo,
ele olhava para a própria arma e para mim, dividido entre insistir no combate
ou recuar. Antes que decidisse, minha lâmina entrou em seu olho esquerdo.
Assim que ele desfaleceu, os cinco surgiram me cercando, arremessando
cordas em meu pescoço e meus braços, tentando me imobilizar. Um deles segurava
uma odiosa corrente com trancas e algemas.
- Se arrependerá por ter derramado nosso sangue, escravo!
Cordas e correntes
se arrebentarão sem o meu corpo amarrarem.
Não respondi a ameaça do bandeirante. Em vez disso, olhei
profundamente seus olhos verdes e gritei com todo o pulmão. Eu não sabia o que
estava fazendo e nem parei para me questionar naquele momento, apenas fiz.
Olhei, gritei, e vi a corda queimar. Uma chama se acendeu onde meu braço estava
enlaçado e logo a corda que me prendia sumiu. Em seguida, cada laço foi se
desfazendo em fogo e todos os invasores paralisaram em temor.
- Deus, o que está acontecendo? - um deles indagou.
- Vocês estão sendo punidos! - respondi.
Eles correram, debandando. Preparei-me para a perseguição.
Jesus Cristo me proteja e me defenda com o poder de sua Santa e Divina Graça, a Virgem Maria de Nazaré, me cubra com o seu Sagrado e divino manto, me protegendo em todas minhas dores e aflições.
- Jorge!
Interrompi meu ímpeto e olhei para trás. Era Bárbara, ou
melhor, Luanda, uma das quilombolas.
- O que está fazendo aqui, mulher?
- Vim impedir que os bandeirantes avançassem - ela
declarou.
- Eu estou fazendo isso, não se meta agora! Irei caçá-los!
Ela agarrou o meu braço e me segurou firme. Seu corpo era
esbelto e delgado e a mão delicada, mas ela apresentava uma postura imperativa.
- Não precisamos derramar mais sangue, Jorge! Acabou! - ela
gritou.
- Eles ainda são uma ameaça!
- Eu disse que acabou!!! - ela urrou. E, junto do seu urro,
um relâmpago dominou o céu.
Trovões surgiram e um raio desceu em direção às árvores,
iniciando um pequeno incêndio. Após os relâmpagos, uma tempestade densa veio,
limpando o sangue derramado.
E Deus, com a sua
Divina Misericórdia e grande poder, seja meu defensor, contra as maldades de
perseguições dos meus inimigos.
Depois de urrar, Luanda amoleceu e teria tombado se não
tivesse encontrado o meu tórax para apoiar-se.
- Acabou, Jorge. Por favor, acabou. Ficaremos protegidos,
vamos embora.
Olhei e vi os brancos fugindo ao longe. Olhei para Luanda.
Conduzi seu abraço ao meu ombro e a ajudei a caminhar.
- Vamos.
E o glorioso São
Jorge, em nome de Deus, em nome de Maria de Nazaré, e em nome da falange
do Divino Espírito Santo, me estenda o seu escudo e as suas poderosas anulas,
defendendo-me com a sua força e com a sua grandeza, do poder dos meus inimigos
carnais e espirituais e de todas suas más influências. E que debaixo das patas
de seu fiel ginete, meus inimigos fiquem humildes e submissos a vós, sem se
atreverem a ter um olhar sequer que me possa prejudicar.
Luanda parecia exausta. Toda determinação de antes
repousava em meu ombro e ela demonstrava serenidade, apesar do risco que ainda
corríamos.
- Vi Jerônimo correndo para enfrentar os invasores. Sabe
cadê ele? - perguntei.
- Ele e Sebastião fizeram o mesmo que você, não os vi desde
então.
- Você viu três indo enfrentar dezenas e veio junto? Por
quê?
- Porque sou idiota, é a única explicação...
- E por que veio justamente atrás de mim?
- Não é óbvio? Porque você é um idiota...
Preferi não perturbá-la mais e permaneci calado enquanto
andávamos.
A tempestade se manteve durante a madrugada, velando nossos
passos em busca do quilombo, mas se dissipou com os primeiros raios de sol. Só
paramos de andar quando amanheceu. Um batedor nos identificou e nos conduziu
até onde o quilombo havia estagnado. Os três homens que eu havia designado para
organizar a fuga ainda contavam os sobreviventes, mas as baixas pareciam
poucas. Pedi que levassem Luanda para descansar e perguntei sobre Jerônimo e
Sebastião.
Ela foi levada até uma cabana improvisada. Os dois já
haviam retornado e vieram ao meu encontro. Dispensamos os outros chefes e
decidimos debater nós três apenas.
- Temos que prosseguir, Ifé. Aqui não é seguro - Jerônimo
começou.
- Eles não vão nos encontrar, Jerôn... Digo, Oyó. Eles não
vão nos encontrar, a tempestade limpou qualquer rastro na madrugada e o grupo
avançou consideravelmente. Não temos condições de migrar mais, podemos ficar
aqui.
- Precisamos de um lugar mais escondido.
- Tem uma pedreira logo ali. Vamos remontar o quilombo na
encosta dela e estaremos seguros.
Jerônimo refletiu por um tempo. Apesar dele não gostar de concordar
comigo, a pedreira o agradava. Sebastião, o mais jovem de nós, também parecia
satisfeito.
- E moraremos aqui, então? - Jerônimo questionou.
- Não só moraremos. Viveremos aqui - respondi.
- Você realmente acredita nisso? - Sebastião questionou. -
Acredita que vamos conseguir viver aqui?
- Acredito em mais do que isso, irmão.
Assim seja com o
poder de Deus e de Jesus e da falange do Divino Espírito Santo.
Enfim, Jerônimo e Sebastião foram ajudar na contagem dos
fugitivos e eu segui em direção a cabana onde Bárbara havia sido levada.
Entrei e sentei ao lado da esteira onde ela descansava.
Estava acordada, pensativa até me ver.
- Chega de lutar, Jorge. Não precisaremos mais disso.
- Tem certeza? Encontramos o que procurávamos?
- Sim, Jorge. Encontramos a paz.
Eu segurei sua mão.
- Então, só lutarei pela paz.
Amém.