Primeiro dia:
A porta de minha casa se abriu numa pancada violenta. Levei um susto tremendo.
– Ágata! – Era meu marido me chamando.
– Amor!
Ele estava se apoiando com as mãos pelas paredes e com uma expressão terrível de dor
no rosto. Larguei a comida no forno à lenha e corri até ele. Apoiei seu braço em meu
ombro e o conduzi até nosso quarto. Pensei que não fosse conseguir chegar até lá de tão
pesado e fraco ele estava. Quando enfim consegui deitá-lo na nossa cama, percebi que
ele ardia de febre e suava frio. Entrei em desespero.
– Ágata! Ágata! Minha cabeça! Minha cabeça dói! Pelo amor dos deuses, faça isso
parar! – Ele agarrava minha roupa e me puxava e eu não sabia o que fazer. – Faça isso
parar! Faça isso parar! – Ele repetia até que soltou minha roupa e agarrou a cabeça, se
encolhendo na cama e gritando de agonia.
Corri para a cozinha e preparei um chá. Foi inútil, pois ele não conseguia beber.
Não conseguia se sentar e nem comigo servindo em sua boca ele conseguia engolir.
Derramei chá no meu marido e o sujei todo até desistir.
O drama durou horas. Eu chorava e segurava a mão dele, rezando baixinho para que
aquilo passasse. No meio da madrugada, ele adormeceu. A febre continuava alta, mas
ele enfim descansava. Fiquei aliviada e dormi também.
Mas, antes, rezei para que aquilo nunca mais acontecesse.
Segundo dia:
Meu marido dormiu o dia inteiro. A febre melhorou, mas ele nem sequer se moveu na
cama. Estático. Apenas respirando.
Imaginei que ele estava se recuperando da febre.
Cuidei de meus afazeres domésticos durante o dia e deitei ao seu lado à noite. Adormeci
tranquila.
Acordei de madrugada com um barulho na cozinha. Meu marido não estava ao meu
lado.
Temerosa, fui verificar o som. Encontrei meu marido arfando e agitado remexendo os
armários.
– Amor?
Ele se virou para mim parecendo um bicho faminto.
– Onde está a comida?
– Eu preparei uma salada, deve estar fresca ainda, vou buscar.
– Salada? Salada?! Eu estou faminto e você me vem com salada?! Sabe que eu trabalho
a merda do dia inteiro e quer que eu coma a mesma comida das lebres?! Onde está a
carne?!
Eu estremeci com os gritos dele. Senti vontade de chorar de medo e vergonha.
– Amor, não precisa falar assim...
– Você é uma inútil! – Ele berrou e saiu batendo a porta dos fundos.
Como ele pôde me tratar daquele jeito logo depois de eu cuidar dele? Não aguentei e
comecei a chorar – poucas lágrimas, logo passaram. Fiquei esperando que ele voltasse
até que o dia começou a amanhecer e eu caí no sono.
Mas, antes, rezei mais uma vez para que aquilo nunca mais acontecesse.
Terceiro dia:
Acordei no meio da tarde. Minha cabeça doía um pouco. Devo ter dormido demais.
Levantei e fui até a sala.
Meu marido estava esparramado na poltrona mordiscando um osso. Aparentemente,
ele havia comido uma peça inteira de algum animal. Ele estava sujo de sangue – muito
sangue. No seu rosto, na sua roupa, pela poltrona e pelo chão.
– Amor, o que é isso? – eu não acreditava no que eu via.
– O que é? – ele respondeu sem nem olhar na minha cara.
– Essa sujeira toda! Você podia ter me acordado que eu preparava o seu almoço.
– Já que você quer me servir, faz o seguinte: prepara um chá pra mim, a dor de cabeça
tá aqui ainda – ele disse apontando para a cozinha, ainda sem dirigir o olhar. Senti-me
insultada, mas considerei que ele devia estar doente ainda e fui atender ao seu pedido.
Fui para a cozinha, peguei algumas ervas que ele gosta e preparei um chá bem docinho
para agradá-lo. Levei o chá até a sala e ele me recebeu com mais humilhação:
– Pensando bem, pensando bem... Não quero chá porra nenhuma não. Faz um suco aí
pra mim.
Não pude aceitar aquilo:
– Isso é jeito de se falar com sua esposa?
– Poxa, amor, seu homem tá doente... Vai negar um suco pro seu homem doente?
Respirei fundo para não brigarmos e voltei à cozinha. Joguei o chá fora, peguei algumas
laranjas e comecei a espremê-las para preparar seu suco. Meus dedos já doíam um
pouco quando terminei, peguei o copo e levei à sala. Mas ele ainda não havia se cansado
de me humilhar.
– Quer saber? Quero mais suco não! Trás uma água! – Ele não aguentou e se pôs a
gargalhar. Ria alto e com a boca bem aberta, segurando a barriga.
Meu queixo caiu. Eu não o reconhecia. Ele nunca havia me tratado daquele jeito. Dei
as costas e fui para a cozinha. Respirei devagar tentando segurar o choro - eu não podia
chorar no terceiro dia seguido. E ele gargalhava.
Quando pensei que eu não ia conseguir e as lágrimas iriam transbordar, ele interrompeu
o riso e soltou um gemido doloroso.
Uma única lágrima escapou.
Fui até a porta e espiei meu marido. Ele estava se arrastando pelo chão em direção
ao nosso quarto. Segui cautelosamente. Debrucei-me pela porta do quarto e o vi se
ajeitando na cama. Corpo encolhido. Mãos na cabeça. Gemidos de dor.
O amor foi mais forte do que o medo.
– Amor?
– Ágata, minha cabeça vai se partir ao meio... Está doendo muito... Faz... Faz isso
parar...
E mais um dia se passou na cama com dores e lágrimas.
Dessa vez, esqueci de rezar.
Quarto dia:
Acordei cedo e meu marido não estava na cama novamente. Procurei pela casa e não o
encontrei. Fiquei aflita. Ele estava doente, não podia sair de casa sem me avisar.
Sentei na poltrona e senti o cheiro de sangue seco. Peguei um balde de água e um pano
para tentar limpar. Enquanto eu esfregava, a porta da casa abriu numa pancada e meu
marido entrou. Suado e ofegante. Pelo visto, havia trabalhado.
– Amor, onde você estava? Você não pode sair assim?
– Fui trabalhar. Alguém tem que cuidar dessa casa.
– Mas você está doente, amorzinho, não pode sair desse jeito.
– Sua voz é irritante, sabia?
Engoli seco.
– O quê?
– Isso mesmo que você ouviu! Sua voz enche o saco!
– Amor, o que há de errado com você?
– Uma esposa imbecil, é isso que há de errado comigo!
– Mas, amor... – Eu não queria mais brigar e faria de tudo para acabar com aquilo. Fui
até ele e abri os braços para abraçá-lo. Ele virou a mão na minha cara.
Foi um soco, na verdade. Um soco que me jogou no chão. Primeiro a pancada seca no
meu olho esquerdo, depois a tontura e sensação de vazio da queda e então o chão e a
batida de cabeça contra a madeira. Tudo doía. O olho, a cabeça, a dignidade e a alma.
– Cansei dessa merda! Cansei de você! Cansei da sua burrice e das suas palhaçadas! Sai
da minha frente!
Ele me apanhou pelo cabelo, me ergueu do chão e me arremessou para nosso quarto.
Cai ao pé da cama, ralando os joelhos e os cotovelos e batendo com a cabeça contra o
chão mais uma vez. Ouvi a porta batendo enquanto me recuperava das novas dores.
Eu chorava. Eu apenas chorava.
Um dia inteiro chorando.
Quinto dia:
Meu marido não entrou no quarto. Acordei e a casa estava em silêncio. Ele havia saído
de novo. Achei melhor assim. Depois, fiquei triste por preferir estar longe do meu
marido, mas continuei achando melhor.
Fui para a horta fazer o meu trabalho. Levei apenas a cesta e o chapéu. Mal havia
começado a colher alguns tomates e ouvi um barulho de coisa quebrando vindo da casa.
Meu estômago gelou.
Outra pancada. Sons de vidro se espatifando. Depois, sons de madeira rachando. Sons
da casa sendo destruída por dentro. Fui até a porta dos fundos e espiei.
Meu marido havia enlouquecido. Ele estava quebrando a casa. Chutando os armários
até afundar o pé na madeira. Pegando vasos e arremessando contra a parede. Pegando
gavetas de talheres e quebrando contra o joelho.
Mas ele não parecia só louco. Ele parecia maior. Os músculos pareciam quase rasgar a
pele, muito maior do que sempre foram. E a pele estava estranha também. Estava pálida.
Quase acinzentada. Ele me olhou. Prendi a respiração. Seus olhos pareciam menores
e mais escuros, com olheiras fundas e negras ao redor. Sua expressão era bestial.
Primeiro, pareceu que não me reconheceu. Depois, entendi que ele havia reconhecido
sim, e que havia odiado o que estava vendo. Ele veio para cima de mim e eu corri.
Apenas corri.
Sexto dia:
Acordei no meio da estrada e percebi que havia desmaiado. Corri muito além do que o
raciocínio me permitiria e acabei apagando por exaustão. Minhas pernas ainda doíam
de esforço. Pensei que fosse de noite, mas percebi que o sol começava a amanhecer e
entendi que já era o dia seguinte. Levantei-me e segui pela estrada de volta para minha
casa. Estava mancando um pouco, mas isso era o menor dos meus problemas.
A casa estava vazia e destruída. Estava tudo quebrado. Tudo. Não há como descrever o
que havia pelo chão porquê não havia nada na casa. Só destroços.
Fui até o que havia sido a cozinha, peguei uma faca no chão e a segurei com firmeza.
Fui até o que havia sido meu quarto e sentei no colchão que havia sido parte da cama. E
esperei meu marido chegar.
Mas ele não chegou.
Quando anoiteceu e eu percebi que ele não apareceria, fiz o que tinha que fazer:
levantei-me e comecei a andar. Segui a estrada e caminhei sem parar. No meio da
madrugada, alcancei a cidade e procurei uma taverna. Era lá que eu encontraria a
solução de todos os problemas.
Sétimo dia:
Os quatro aventureiros pagaram a minha janta e o meu quarto numa estalagem. No
dia seguinte, fomos até a minha casa. Mostrei tudo para eles e contei tudo. Eu estava
determinada até começar a falar. Fui lembrando e fui me fragilizando e chorei. Eu não
devia ter chorado, não na frente deles. A única mulher do grupo, uma elfa que trajava
um longo robe e portava um pesado tomo nos braços, me abraçou e me acalmou. Ainda
com o rosto molhado de lágrimas, terminei de contar a história.
Eu havia dito que precisava deles para matar um monstro, mas eu já não queria aquilo.
Eu queria salvação.
– Vocês podem? Podem salvar o meu marido?
Eles se entreolharam.
– O que acham? – Perguntou o homem de armadura de metal e espada e escudo nas
costas.
A elfa abaixou a cabeça e deixou escapar uma expressão de tristeza em seu rosto:
– O estágio está avançado demais. Agora, é irreversível.
Segurei as lágrimas.
– Como isso pôde acontecer? – perguntei sem querer aceitar os fatos.
A elfa hesitou, mas foi sincera:
– Provavelmente ele foi longe demais na floresta e deu o azar de encontrar uma fada
negra. Às vezes, elas conjuram magias de ilusão ou necromancia para assustar ou
machucar as pessoas. Às vezes, elas decidem se hospedar na vítima. A fada entrou pela
orelha ou pela boca dele e ele começou a se transformar num monstro. Agora, eles são
um só.
– Um troll... – Lamentei.
– Isso mesmo, um troll – ela confirmou.
Eu não sabia o que era necromancia, nem entendia nada de trolls. Apenas sabia que
monstros existiam e que eles matavam pessoas – e sabia que meu marido preferiria
morrer do que ser uma coisa dessas.
– Então, façam o que tiver de ser feito – declarei sem coragem de olhar para nenhum
deles.
Permaneci de olhos fechados e rosto virado. Logo, os aventureiros começaram a andar e
saíram da casa.
E eu chorei.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012
sexta-feira, 24 de agosto de 2012
3 - Galwin
Madrugada.
Trezentos homens atrás de uma colina. Mais trezentos atrás dos
muros fortificados. Três sargentos discutindo táticas.
- Temos
aríetes e escadas - Elesehr Bjorn, o sargento da tropa de arqueiros,
notificou.
- As
escadas são dispensáveis, perderemos muito tempo e homens caso
tentemos invadir por cima do muro. Precisamos derrubar o portão
principal e invadir a cidadela com todas as nossas forças- Galwin
Snow respondeu.
- Lá
dentro, eles não terão a menor chances - Lothar, o bárbaro, estava
ansioso.
- Nós
não teremos chances se eles nos enfraquecerem antes de entrarmos.
Minha unidade irá na frente em formação de tartaruga e um aríete.
-
Formação o quê? - O bárbaro pareceu confuso.
- Escudos
levantados sobre as cabeças dos soldados - o Bjorn esclareceu.
-
Elesehr, você vai me dar cobertura. Garanta que qualquer homem que
apareça nos muros receba uma flecha na garganta. Lothar, sua unidade
virá logo após a minha, eu irei derrubar o portão e abrirei
caminho para você entrar em carga. Todos entraremos na cidade,
Lothar, eu e Elesehr, nessa ordem. Todos de acordo?
Elesehr
estalou a língua.
-
Perderemos muito homens, mas temos chances.
- É o
que temos, sabíamos que estávamos em desvantagem desde o começo.
Eles ainda não nos detectaram, teremos que atacá-los sem dar tempo
de se organizarem para equilibrar as chances. Alguma sugestão
melhor?
Ninguém
se manifestou.
- Então,
vamos. Minhas tropas marcharão dentro de dez minutos. Estejam
preparados.
A cota de
malha pesava sob os ombros do sargento bastardo. As botas eram lama
pura. O escudo de metal parecia inadequado na mão direita para a
maioria do guerreiros. A espada bastarda simplesmente fazia parte da
mão esquerda.
- Homens!
- Galwin mobilizou sua tropa. - Temos uma missão nesta noite! Iremos
derrubar o portão e, depois, derrubar o invasor! Todos teremos as
espadas sujas ao amanhecer e todos teremos bebidas e mulheres na
próxima noite! Vamos! Vamos para nossa conquista! - e um urro se fez
na noite. O sargento marchou e foi seguido por sua tropa.
Galwin
não tentou ser discreto e nem conseguiria. Sua unidade estava a
cerca de dois quilômetros de distância num terreno plano e de
vegetação rasteira. Depois de dez minutos, tochas se agitaram de um
lado para o outro no muro. Em vinte, uma meia dúzia de homens
apareceram com arcos. Em trinta, mais alguns poucos surgiram e os
soldados estavam a menos de cinquenta metros do portão.
-
Formação tartaruga! - ordenou e foi obedecido.
Logo,
flechas assobiaram pelo ar e encontraram o casco de escudos. Mesmo
sem enxergar os homens atrás de si, Galwin percebia como eram
inexperientes. Todos com os escudos erguidos sobre as cabeças, mas
conforme andavam e se cansavam, iam esbarrando uns nos outros,
empurrando e abrindo brechas para as setas matarem os incompetentes.
Flechas encravaram nos escudos na primeira saraivada sem causar
nenhum estrago, mas um gemido agonizante pôde ser ouvido na segunda
. Quando chegaram ao portão, a segunda ordem foi dada.
- Abrir
caminho para o aríete!
A maioria
não ouviu, mas seguiram o exemplo dos homens das primeiras fileiras
e abriram o corredor.
E a tora
de madeira maciça veio com fúria contra o portão.
Logo no
primeiro impacto, a madeira estalou e rachou. Nesse momento, pedras
caíram do céu acompanhando as flechas. O sargento sentiu uma batida
forte em seu escudo e quase deu um soco na minha própria cabeça,
mas manteve a posição firme. Ele pôde ver um de seus homens
distraídos observando o aríete receber um pedregulho no pescoço e
cair esparramado no chão com a cabeça num ângulo disforme.
-
Protejam o aríete! - Galwin gritou para evitar que matassem os
homens encarregados da principal missão e para garantir a
concentração dos demais. A defesa era precária, mas relevante.
O segundo
impacto foi ainda mais intenso e espalhou rachaduras e brechas por
toda madeira inimiga. A ponta de uma flecha perfurou o escudo do
sargento e não atingiu seu antebraço por centímetros. Um cadáver
despencou do muro com uma flecha na barriga e matou ridiculamente um
dos homens do aríete, que foi prontamente substituído por outro
entusiasta vibrante - a visão de dois corpos um em cima do outro era
risível.
O
terceiro impacto foi decisivo. Uma cratera enorme inutilizou a
barreira e abriu caminho para a invasão. Os homens de fora gritavam
em vitória precipitada. Os homens de dentro se mantinham firmes em
suas posições.
- Abrir
caminho para a tropa aliada!
As
flechas e pedras pararam de cair. Agora, os inimigos se focavam na
proteção interna e realmente precisavam de todos. A tropa de Galwin
abriu caminho e logo a tropa de Lothar veio. Mais parecia uma turba
bárbara como o sargento do que realmente uma unidade militar. Eles
correram e entraram com as armas erguidas para o ataque e o bastardo
torceu para que eles fizessem tanto estrago quanto barulho.
Enquanto
a tropa do bárbaro avançava na vanguarda, o bastardo reorganizou a
sua. Gritou, ordenou que os comandos fossem repassados, mas sabia que
era impossível ter uma formação perfeita naquele momento -
infelizmente, teria que contar com a inteligência da maioria. Enfim,
deu-se por satisfeito e marchou para dentro da cidadela.
Não
demorou para Lothar se mostrar imprudente. O capitão inimigo havia
posicionado duas tropas na frente do combate e sua própria tropa na
retaguarda. O bárbaro simplesmente investiu para o meio do campo de
batalha e agora tinha sua tropa cercada pelas duas outras - e não
demoraria para ter seus homens dizimados.
Galwin
movimentou seus homens para o flanco esquerdo, pegando uma das tropas
adversárias pela retaguarda.
Havia
chegado sua tão esperada hora de derramar sangue.
Os
soldados inimigos viram a chegada da tropa do bastardo, mas não
souberam como reagir. Nem todos os homens combatem ao mesmo tempo,
muitos ficam na retaguarda esperando sua hora de atacar e eram
justamente esses quem o sargento mirava. Sendo assim, eles tinham a
ordem de atacar um adversário, mas estavam vendo outro se aproximar
e seu líder estava muito ocupado para perceber a aproximação e dar
as ordens apropriadas - diversão garantida para o atacante. Com o
escudo erguido, Galwin espetou a costela do primeiro inimigo, que
caiu na mesma hora. Deu um passo, abriu um estômago e derrubou mais
um. Outro passo, outra barriga vazando, outro corpo no chão. Com um
bom avanço, parou e comandou antes que sua tropa perdesse a unidade
e virasse uma bagunça.
- Manter
posição! Manter posição!
Um
soldado veio contra Galwin com a espada erguida num movimento
completamente óbvio que encontrou o escudo e foi morto com a lâmina
em seu tórax.
-
Proteger o flanco - alguém gritou. Não foi possível ver quem, mas
com certeza era um sargento em potencial, alguém que percebe uma
necessidade de liderança e toma a dianteira. Alguém que precisava
morrer.
A tropa
do bastardo manteve uma formação aceitável e ele ordenou que
voltassem a avançar. O nível de disciplina e treinamento da sua
tropa e da inimiga era o mesmo: homens jovens, ansiosos e
inexperientes. Mas ele estava atacando o flanco e não o fronte, ou
seja, homens que não receberam ordem nenhuma, não tinham certeza do
que fazer e, o pior, não tinham uma voz que comandasse, cada um
tomava decisões diferentes, enfraquecendo a unidade. O desfecho
daquela noite era incerto, mas aquela tropa estava fadada.
Galwin
derrubou mais alguns adversários até encontrar o aspirante a
sargento, garantir ter o seu cadáver no chão e pode seguir matando
sem mais problemas. O sargento inimigo só se deu conta que estava
sendo cercado quando metade da sua tropa já havia sido eliminada.
Lothar surpreendeu mantendo metade dos seus homens vivos até aquele
momento. Elesehr estava dando um suporte significativo com seus
arqueiros e evitando que a tropa do bárbaro fosse morta.
Homens
caíram e foram pisoteados por todos os lados e o bastardo garantiu
que a maioria fosse do lado contrário ao seu. Lothar aproveitou o
reforço, matou o sargento e agilizou o fim daquela tropa. O ideal
seria juntar as duas tropas e terminar com a outra unidade inimiga
Mas a
guarda pessoal do capitão Blacktide avançou contra Galwin.
-
Barreira de escudos! - o bastardo berrou.
E as
tropas se chocaram.
O
sargento não sabia o nome do herdeiro vassalo dos Greyjoy, mas sabia
que era ele que estava a sua frente. Ele pretendia usar sua tropa
descansada contra a que já estava avariada e isso poderia significar
o fim de Galwin - por mais que Lothar derrotasse a outra tropa, não
sobrariam homens o suficiente para um reforço significativo e as
flechas de Elesehr também não seriam um grande diferencial.
Só havia
uma maneira de vencer aquela batalha.
-
Desfazer formação! Atacar! Atacar a vontade! Matem todos! - Snow
comandou e um urro de empolgação ignorante veio em seguida. O jovem
Blacktide olhou incrédulo.
- Acabou
de garantir a sua derrota.
- Não,
acabei de garantir a sua.
Não
havia chances de derrotar toda a tropa inimiga, mas havia chances de
derrotar um único homem: o líder.
E o
bastardo avançou e atacou. Seu primeiro golpe foi aparado pela
espada inimiga, o segundo encontrou o escudo e o terceiro assobiou no
ar. O Blacktide contra-atacou com seu escudo para abrir a guarda,
empurrando Galwin um passo para trás e estocou, mas seu golpe foi
evitado com a espada e a ofensiva foi retomada. O sargento forçou
que seu inimigo recuasse um passo com um ataque impetuoso, outro com
um encontrão de escudos e um terceiro ataque foi tentado, mas o
nobre se concentrou na defesa e impediu qualquer avanço. Revirando o
jogo, o Blacktide girou a espada na horizontal violentamente,
esperando uma esquiva, mas Snow bloqueou com o escudo, mesmo quase se
desequilibrando com o impacto. O inimigo aproveitou para atacar e era
justamente o que Galwin queria - ele não se distraiu com o bloqueio,
pelo contrário, prendeu a atenção do adversário para onde ele
queria. A espada do herdeiro veio, o bastardo esquivou pela direita e
desceu seu escudo no tornozelo do jovem herdeiro Blacktide. Um estalo
doloroso se fez ouvir, seu rosto se desconfigurou em dor e seu corpo
foi ao chão.
- Você
conseguiu... - ele gemeu. - A vitória é sua... Sou seu prisioneiro.
- Eu não
vim fazer prisioneiros.
A mão
direita de Galwin encontrou o cabelo do herdeiro Blacktide e a lâmina
encontrou sua garganta.
- O
capitão Blacktide está morto! - o sargento bastardo urrou e todos
os soldados aliados responderam em comemoração.
Alguns
inimigos fugiram, outros se renderam, mas a maioria foi morta - Snow
não aceitou nenhuma rendição e nem Lothar se apiedou de seus
derrotados.
A euforia
foi imensa e parecia inacabável. O combate foi dentro da cidadela,
entre as casas, mas nenhum cidadão foi visto. Provavelmente, a
maioria das família fugira para longe durante a madrugada antes da chegada das tropas, mas ninguém apareceu nem ao longe mesmo
depois da vitória - quem estava perto provavelmente ainda estava com
medo e escondido pelos casebres. Os homens queriam bebidas e
mulheres, mas aquilo não era um saque e Galwin teve que detê-los.
Prometeu mil recompensas para vários e até deu bronca em alguns,
mas manteve o controle. Quando os nervos estavam menos exaltados,
todos marcharam até o casarão dos Dorgauld.
Os servos
dos Blacktide que guardavam a residência já haviam se rendido,
todos desarmados e inofensivos como gado quando Galwin, Lothar e
Eleserh chegaram. O sargento Snow permitiu que aqueles vivessem.
Os
Dorgauld os receberam cheios de agradecimentos. Prometeram honrarias
e presentes aos "salvadores". O povo os saudaria e um
banquete seria realizado.
Eram
heróis.
E o
bastardo retornaria para seu tio de queixo erguido e teria sua maior
recompensa: a aprovação de sor Arthur Bjorn e o ódio dos demais
vassalos.
Mas, por
hora, brindaria a vitória com seus comandados. Com sua própria
tropa.
domingo, 5 de agosto de 2012
Encruzilhada
Foi uma longa
viagem de Arena para Pena Dourada. Meu mestre me aguardava em seu templo e eu
ainda tinha um dia de viagem pela frente. Fanfarra, meu cavalo, estava amarrado
em uma árvore próxima a minha fogueira, enquanto eu terminava de acender os
incensos para a minha meditação.
Sentei-me de
pernas cruzadas a um metro da fogueira, sentindo o suor se formar em minha
sobrancelha e o vento gelado soprar em minhas costas. Pousei minha espada em
meu colo e permiti que o odor doce dos incensos entrasse em harmonia com o odor
das árvores ao meu redor.
Inspirei uma
vez. Lembrei de minha juventude ao lado de meu mestre, dos treinos com espadas,
dos ferimentos causados pelo simples desacostume com uma armadura, das horas
diárias de corrida, das palavras de sabedoria. Eu me orgulho do treinamento que
tive. Orgulho-me de ser pupilo de um homem que atingiu o equilíbrio entre
virtude e poder.
Inspirei mais
uma vez. Ele me dizia que havia tido um pupilo parecido comigo, mas que havia
se desvencilhado. Um pupilo com um grande potencial, mas impaciente e
agressivo. Um pupilo que havia se perdido em vícios, se tornado um assassino
sem escrúpulos, que acabou por ser expulso do templo.
Inspirei mais
uma vez. “O que nós devemos ter antes de termos uma espada?”, meu mestre me perguntava.
“Virtude”, eu respondia, como havia aprendido com ele. “E o que devemos ter
enquanto empunhamos uma espada?”, meu mestre perguntava. “Virtude”, eu respondia
com disciplina. “E o que devemos ter após uma batalha?”. “Virtude”.
Inspirei mais
uma vez. Eu prometi ao meu mestre que me tornaria um guerreiro. Prometi que a
morte nunca seria a minha finalidade. Em meus treinos, aprendi que a satisfação
da luta está na auto-superação e na vitória, não no sangue derramado. Matar um
criminoso ou um tirano é fazer justiça. Matar inocentes é vilania. Matar pelo
prazer de tirar uma vida é permitir ser consumido por trevas.
Inspirei mais
uma vez. Mas existe uma encruzilhada entre o caminho de um guerreiro e o
caminho de um assassino. Meu mestre havia me avisado que seria inevitável
passar por esta encruzilhada e que haveria alguém me esperando nela.
Eu perguntei se
seria o seu ex-pupilo, mas meu mestre disse que não, que seu ex-pupilo já
estava longe no caminho dos assassinos. Meu mestre me avisou que quem estaria
me esperando na encruzilhada seria eu mesmo.
Fiquei confuso
com a resposta, pedi explicação, mas a única coisa que ele me disse foi:
“Quanto maior a sua luz, meu pupilo, maior será a sua sombra”.
Ouvi passos.
Abri meus olhos, empunhei a espada e me levantei. A
fogueira estava em brasas e logo se apagaria por completo graças ao
vento. O ar estava cada vez mais frio e incômodo. Os passos vinham em minha
direção, pela frente – alguém queria ser percebido. Permaneci em silêncio,
esperando para ver quem ousava interromper minha meditação. Fanfarra relinchou,
agitado.
Vestia uma
armadura de couro recoberta por peitoral, ombreiras, saiote, botas e manoplas
de aço, empunhava uma espada longa na mão canhota e um escudo de metal na outra.
Cabelos aparados, castanhos e queixo erguido, forte e orgulhoso. Encarei-o nos
olhos, mas não vi nada, pois havia fendas no lugar dos olhos e, ao redor, seu
rosto era quebradiço e com rachaduras. Mesmo sendo perturbador, vi que estava
enganado, que havia algo nas cavidades, alguma essência, mas não consegui
identificar o quê. Sei que não estava vazio por dentro, havia algo. Eu poderia
dizer que estava diante de um espelho, exceto pelos olhos e, espero eu, pela
essência.
Por muito tempo
eu me questionei qual era o caminho de um guerreiro. Ainda não tinha a resposta,
mas acho que havia chegado à encruzilhada.
Ele ergueu o
escudo e a espada, exatamente como meu mestre havia me ensinado. Sem
cerimônias, eu corri em investida. Ele bloqueou com o escudo e contra-golpeou
com uma estocada. Girei em esquiva e descrevi um arco horizontal, mirando nas
costas do meu adversário. Ele se agachou, pegou impulso nas pernas e estocou
mais uma vez. Escapei por pouco, mas ele conseguiu abrir um corte na minha
costela, embaixo da axila. Dei alguns passos para trás, recuperando a guarda.
Ele sorriu.
Golpeei girando
minha espada da esquerda para a direita em sentido vertical, mas ele deu um
passo para trás, se esquivando e logo avançou. Bloqueei o primeiro golpe com o
escudo, aparei o segundo com a espada, o terceiro
acertou meu antebraço esquerdo, me fazendo largar a espada, o quarto acertou
minha coxa direita, derrubando-me de joelho no chão.
Meu inimigo
agarrou meu cabelo e encostou lentamente a sua espada na minha garganta.
Posicionou com precisão. Ouvi um grito.
Senti um vento
úmido e forte soprar em meu rosto, me fazendo abrir os olhos. Eu estava
ajoelhado em meu acampamento. A fogueira e os incensos pareciam ter acabado de
apagar. Fanfarra estava agitado. Não havia sido um sonho. Seja lá o que havia
sido, não era um sonho. Mas de quem foi o grito?
- Mestre!
Arrumei minha
mochila de viagem, montei em Fanfarra, arrebentei a corda que o prendia com a
espada e pus-me a cavalgar. Sei que meu cavalo estava cansado, mas eu precisava
alcançar o mestre o mais rápido possível. Eu sei que ele nunca estaria em
perigo. Sei que nada era ameaça para ele. Mas algo estava errado e eu não podia
ficar de braços cruzados.
O percurso que levaria mais um dia cavalgando, eu e
Fanfarra fizemos antes de terminar a madrugada. Não consegui manter minha mente
focada em nada positivo. Nunca havia saído tão agitado de uma meditação.
Assim que
cheguei diante da escadaria do templo, amarrei Fanfarra em qualquer árvore e
subi correndo pelos degraus. As árvores pelo caminho que costumavam ser tão vivas pareciam paradas e frias. A lua que costumava
brilhar como prata estava cinza e agourenta. Ou talvez tudo estivesse normal e
eu que estivesse mórbido.
Atravessei as
pilastras cheguei ao portal do templo. Tudo estava em silêncio. Tudo estava
imóvel. Quebrei a estabilidade da madrugada e abri o portal.
- Não...
Impossível...
Em cada parede e
em cada pilastra, havia uma marca de batalha. Vasos e estatuetas não eram mais
do que migalhas espalhadas pelo templo. Na parede, ao fundo, havia uma estrela
invertida de sete pontas desenhada em sangue e logo abaixo, no chão, jazia o
corpo de meu mestre, assassinado.
quarta-feira, 20 de junho de 2012
Fé
-
Rezando para o Deus dos brancos de novo!?
Era
noite, eu estava de joelhos em silêncio com as mãos unidas encostadas em minha
testa quando fui interrompido rispidamente. Respirei fundo e me mantive
concentrado. Não levei mais do que alguns segundos para terminar minha oração,
fiz o sinal da cruz e me levantei, encarando o meu irmão de quilombo. Ele era
um banto, uma etnia do sul do nosso continente natal, tinha o corpo bem
definido, postura altiva, altura mediana e nenhum carisma para lidar com os
outros quilombolas. Por eu ser um zulu, a maioria dos brancos acreditava que
éramos da mesma etnia, mas era possível ver diferenças bem delineadas, além de
eu ter um palmo a mais de altura do que ele.
- O que
quer, Jerônimo? - perguntei. Ele levantou o dedo em direção ao meu rosto e
engrossou ainda mais o tom de voz.
- Já
mandei não me chamar por este nome maldito! O quilombo está cheio de problemas
e você está ai ajoelhado para o Deus dos brancos!
-
Desculpe, Oyó, mas não é hora para discutirmos.
- Ah,
mas para reverenciar o Deus deles é hora?
- Eu só
estava pedindo proteção aos nossos
orixás.
-
Mentira! Você vivia ajoelhado na frente daquele santo branco, em cima de um
cavalo branco, vestindo aço branco! Aposto que era para ele que você estava
rezando!
- Sim,
era. Mas, por que você acha que os santos e os orixás são entidades diferentes?
- Eu
adoraria que você falasse isso para um escravista! Ele chamaria de "heresia"
e te queimaria numa fogueira! Droga, Ifé, te deram o maldito nome de um santo e
você acha que pedir alguma coisa a ele vai funcionar? Nem os nossos nos ouvem
mais!
- Não é
verdade, eles ouvem sim. Enfim, não acho que você veio aqui criticar a minha
fé, não é? O que quer?
- Os bandeirantes
estão cada vez mais perto. Eles nos rastrearam depois da última caravana que
assaltamos e logo vão estar cuspindo fogo em nós com as armas mágicas deles. Eu
disse que não valia à pena atacar aquela caravana!
-
Libertar quinze irmãos vale à pena.
- Vale
à pena libertar quinze e deixar nossos cinquenta em risco? Droga, Ifé, vamos
ter que mover o quilombo inteiro e migrar por dias, ou até semanas para não
sermos encontrados! Até quando vamos viver assim?
- Até o
fim. Só queremos viver e os homens brancos não podem nos tirar esse direito. Tenho
fé de que podemos viver nessas terras da nossa forma.
- Do
que você entende de fé? Agora a pouco chamou um santo branco de orixá.
- Não
vamos voltar a essa discussão, até porquê...
Um
barulho interrompeu nossa discussão. Um barulho de fogo mágico. Entreolhamo-nos,
assustados. Era evidente que estávamos sob ataque.
- Reúna
os quilombolas e fuja para o oeste! Eu atraso eles! - ordenei e pus-me a
correr.
- Não
mesmo! Mande outro fugir, eu fico também! - ele rebateu.
Corremos
até o acampamento. Eu parei para organizar os fugitivos enquanto Jerônimo
apanhou dois machados de caça e continuou avançando em direção ao som do fogo
mágico. Tudo era caos, alguns corriam para direções aleatórias, mulheres
agarravam as crianças e choravam e alguns poucos tentavam reunir grupos.
-
Dingane, Ulundi, Bapedi! Reúnam vinte quilombolas cada e fujam para oeste! Eu
vou atrasar os bandeirantes e encontro vocês depois!
Os três
me ouviram e puseram-se a gritar e convocar quem conseguiam. Aos poucos, a
confusão foi ganhando ordem e logo o acampamento seria abandonado.
- Que
Oxalá os guie - permiti-me uma breve prece e corri para a direção em que
Jerônimo havia ido.
Depois
de percorrer cerca de quarenta metros de mata fechada, pude avistar os
invasores. Os brancos já haviam abandonado a discrição e começavam a avançar com
armas erguidas, prontos para matar. Subi numa árvore e aguardei em silêncio a
aproximação. Somente naquele grupo, eram dez homens, além dos outros comboios
afastados. Eu não tinha opção senão lutar. Enquanto me preparava, palavras
vieram em minha mente. Palavras que, há pouco, eu mesmo orava.
Chagas abertas,
Sagrado Coração todo amor e bondade, o sangue do meu Senhor Jesus Cristo, no
corpo meu se derrame hoje e sempre.
Mantive o silêncio enquanto o grupo passava por entre a
árvore onde eu estava. Depois de três homens terem passado, me joguei em cima
de um deles.
Ainda no ar, soquei a cabeça do primeiro bandeirante que
caiu desacordado na grama. Os sete que os seguiam se alarmaram, mas os dois que
estavam a frente ainda se viravam para ver o que havia acontecido. De nada me
serviria a arma mágica que o desacordado tinha em mãos, então, desembainhei a
fina espada que ele levava na cintura. Os homens apontaram as cuspidoras de
fogo e eu me joguei atrás da árvore, ficando entre os dois invasores da
vanguarda e o tronco, protegido dos disparos. Os dois se espantaram ao me ver,
o que me deu tempo para atacar. O primeiro não teve tempo para reagir e teve o
estômago perfurado pela minha lâmina. O segundo ergueu a arma desajeitado e
disparou contra qualquer direção, inofensivo. Girei a espada na horizontal e
abri sua garganta, encerrando sua vida. Mais um disparo estourou no ar e, dessa
vez, senti um calor feroz nas minhas costas. Os bandeirantes da retaguarda
chegavam.
Eu andarei vestido
e armado com as armas de São Jorge. Para que meus inimigos tendo pés não me
alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me enxerguem e nem
pensamentos eles possam ter para me fazerem mal.
Levei a mão às costas, instintivamente, para segurar o
ferimento, mas encontrei a minha pele lisa, sem perfuração. Eu conhecia as
armas mágicas, sabia que elas podiam matar com um único ataque, mas meu corpo
se encontrava ileso.
Armas de fogo, o
meu corpo, não o alcançarão.
Levantei-me e encarei os brancos. Mais dois disparos
atingiram meu o ombro e o meu abdômen e
tudo que fizeram foi provocar calor. Calor que logo se voltaria contra eles.
- É um bruxo! É um bruxo! As armas de fogo não o atingem!
- Então, use as armas brancas, seu supersticioso idiota.
Facas e lanças se
quebrarão sem ao meu corpo chegar.
Três sacaram lâminas enquanto cinco decidiam se imitariam
seus amigos ou se continuariam com as armas mágicas. O primeiro que tentou me
atacar recebeu uma estocada no tórax e tombou no chão, morto. O segundo girou
um facão duas vezes, me obrigando a recuar enquanto esquivava, mas teve a arma
aparada pela minha no terceiro ataque. No momento em que nossas armas se
cruzaram, a dele trincou e rachou. Seus olhos se arregalaram enquanto seu facão
se desfazia no ar. Desarmado e apavorado, ele deu meia volta e tentou correr,
mas recebeu minha espada na perna esquerda e tropeçou em direção ao solo. O
terceiro aproveitou minha distração e tentou encravar seu facão em minha
costela, porém, pareceu ter atacado uma placa de aço impenetrável. Incrédulo,
ele olhava para a própria arma e para mim, dividido entre insistir no combate
ou recuar. Antes que decidisse, minha lâmina entrou em seu olho esquerdo.
Assim que ele desfaleceu, os cinco surgiram me cercando, arremessando
cordas em meu pescoço e meus braços, tentando me imobilizar. Um deles segurava
uma odiosa corrente com trancas e algemas.
- Se arrependerá por ter derramado nosso sangue, escravo!
Cordas e correntes
se arrebentarão sem o meu corpo amarrarem.
Não respondi a ameaça do bandeirante. Em vez disso, olhei
profundamente seus olhos verdes e gritei com todo o pulmão. Eu não sabia o que
estava fazendo e nem parei para me questionar naquele momento, apenas fiz.
Olhei, gritei, e vi a corda queimar. Uma chama se acendeu onde meu braço estava
enlaçado e logo a corda que me prendia sumiu. Em seguida, cada laço foi se
desfazendo em fogo e todos os invasores paralisaram em temor.
- Deus, o que está acontecendo? - um deles indagou.
- Vocês estão sendo punidos! - respondi.
Eles correram, debandando. Preparei-me para a perseguição.
Jesus Cristo me proteja e me defenda com o poder de sua Santa e Divina Graça, a Virgem Maria de Nazaré, me cubra com o seu Sagrado e divino manto, me protegendo em todas minhas dores e aflições.
- Jorge!
Interrompi meu ímpeto e olhei para trás. Era Bárbara, ou
melhor, Luanda, uma das quilombolas.
- O que está fazendo aqui, mulher?
- Vim impedir que os bandeirantes avançassem - ela
declarou.
- Eu estou fazendo isso, não se meta agora! Irei caçá-los!
Ela agarrou o meu braço e me segurou firme. Seu corpo era
esbelto e delgado e a mão delicada, mas ela apresentava uma postura imperativa.
- Não precisamos derramar mais sangue, Jorge! Acabou! - ela
gritou.
- Eles ainda são uma ameaça!
- Eu disse que acabou!!! - ela urrou. E, junto do seu urro,
um relâmpago dominou o céu.
Trovões surgiram e um raio desceu em direção às árvores,
iniciando um pequeno incêndio. Após os relâmpagos, uma tempestade densa veio,
limpando o sangue derramado.
E Deus, com a sua
Divina Misericórdia e grande poder, seja meu defensor, contra as maldades de
perseguições dos meus inimigos.
Depois de urrar, Luanda amoleceu e teria tombado se não
tivesse encontrado o meu tórax para apoiar-se.
- Acabou, Jorge. Por favor, acabou. Ficaremos protegidos,
vamos embora.
Olhei e vi os brancos fugindo ao longe. Olhei para Luanda.
Conduzi seu abraço ao meu ombro e a ajudei a caminhar.
- Vamos.
E o glorioso São
Jorge, em nome de Deus, em nome de Maria de Nazaré, e em nome da falange
do Divino Espírito Santo, me estenda o seu escudo e as suas poderosas anulas,
defendendo-me com a sua força e com a sua grandeza, do poder dos meus inimigos
carnais e espirituais e de todas suas más influências. E que debaixo das patas
de seu fiel ginete, meus inimigos fiquem humildes e submissos a vós, sem se
atreverem a ter um olhar sequer que me possa prejudicar.
Luanda parecia exausta. Toda determinação de antes
repousava em meu ombro e ela demonstrava serenidade, apesar do risco que ainda
corríamos.
- Vi Jerônimo correndo para enfrentar os invasores. Sabe
cadê ele? - perguntei.
- Ele e Sebastião fizeram o mesmo que você, não os vi desde
então.
- Você viu três indo enfrentar dezenas e veio junto? Por
quê?
- Porque sou idiota, é a única explicação...
- E por que veio justamente atrás de mim?
- Não é óbvio? Porque você é um idiota...
Preferi não perturbá-la mais e permaneci calado enquanto
andávamos.
A tempestade se manteve durante a madrugada, velando nossos
passos em busca do quilombo, mas se dissipou com os primeiros raios de sol. Só
paramos de andar quando amanheceu. Um batedor nos identificou e nos conduziu
até onde o quilombo havia estagnado. Os três homens que eu havia designado para
organizar a fuga ainda contavam os sobreviventes, mas as baixas pareciam
poucas. Pedi que levassem Luanda para descansar e perguntei sobre Jerônimo e
Sebastião.
Ela foi levada até uma cabana improvisada. Os dois já
haviam retornado e vieram ao meu encontro. Dispensamos os outros chefes e
decidimos debater nós três apenas.
- Temos que prosseguir, Ifé. Aqui não é seguro - Jerônimo
começou.
- Eles não vão nos encontrar, Jerôn... Digo, Oyó. Eles não
vão nos encontrar, a tempestade limpou qualquer rastro na madrugada e o grupo
avançou consideravelmente. Não temos condições de migrar mais, podemos ficar
aqui.
- Precisamos de um lugar mais escondido.
- Tem uma pedreira logo ali. Vamos remontar o quilombo na
encosta dela e estaremos seguros.
Jerônimo refletiu por um tempo. Apesar dele não gostar de concordar
comigo, a pedreira o agradava. Sebastião, o mais jovem de nós, também parecia
satisfeito.
- E moraremos aqui, então? - Jerônimo questionou.
- Não só moraremos. Viveremos aqui - respondi.
- Você realmente acredita nisso? - Sebastião questionou. -
Acredita que vamos conseguir viver aqui?
- Acredito em mais do que isso, irmão.
Assim seja com o
poder de Deus e de Jesus e da falange do Divino Espírito Santo.
Enfim, Jerônimo e Sebastião foram ajudar na contagem dos
fugitivos e eu segui em direção a cabana onde Bárbara havia sido levada.
Entrei e sentei ao lado da esteira onde ela descansava.
Estava acordada, pensativa até me ver.
- Chega de lutar, Jorge. Não precisaremos mais disso.
- Tem certeza? Encontramos o que procurávamos?
- Sim, Jorge. Encontramos a paz.
Eu segurei sua mão.
- Então, só lutarei pela paz.
Amém.
terça-feira, 29 de maio de 2012
2 - Tony
- O lorde de Winterfell convocou
todas as casas juramentadas. Estaremos partindo em campanha em breve.
- O lorde de Winter está morto,
senhor.
- E ele deixou um sucessor. Está
me chamando de idiota ou bancando um?
- Perdões, senhor.
Fazia um mês que Robb Stark havia
partido para o sul jurando vingar seu pai, Eddard Stark, executado a mando do
Rei Joffrey Baratheon. A maioria das casas já haviam se unido ao novo lorde,
mas o norte ficaria numa posição extremamente delicada. Sem os senhores e sem o
próprio lorde, a criminalidade aumentaria muito e até casas menores poderiam
despertar interesses mesquinhos em vez de honrar o chamado de Robb. O que
aconteceu com a casa Dorgauld foi ainda pior: uma antiga família rival das
Ilhas de Ferro aproveitou a partida de Robb Stark, invadiu o norte e conquistou
o território da família. Não podia-se esperar menos dos Blacktide, vassalos dos
Greyjoy.
Sor Arthur Bjorn socou a mesa.
- Está acordado, Tony!?
- Sim, pai, estou!
Tony Bjorn era o herdeiro de
Arthur. Doze anos e ainda relutante para aprender a governar - o que só fazia
seu pai ficar ainda mais severo. Os dias de Tony eram divididos em quatro
etapas: treino com armas, estudos, observação dos afazes de seu pai - como
ouvir aos pedidos dos fazendeiros ou participar de um conselho de guerra - e
descanso. Seria a primeira vez que o herdeiro ficaria responsável pelas terras
e Arthur não queria que nenhum chefe da guarda ou meistre fizesse seu trabalho
- isso era dever de seu filho e ninguém mais, e assim seria.
- Não irei embora enquanto os
vassalos dos Greyjoy pensarem que são meus vizinhos. Amanhã resgataremos os Dorgauld
e só então partirei.
- Eles estão em vantagem, senhor.
Já conquistaram todo o território.
- E nós tomaremos de volta.
- Quando partirei, senhor?
- Não partirá. Ninguém é louco de
invadir minhas terras sabendo que você está aqui e você só sairá quando formos
para o sul. Enviaremos trezentos homens. Meus dois sobrinhos e o bárbaro
liderarão a invasão.
No conselho de guerra, Arthur e
Tony Bjorn, Meistre Sabin e os três capitães, Howard, Lance e Anthony. Meistre
Sabin havia conversado com Arthur em particular e já sabia que seu senhor já
decidira tudo antes da reunião. Tony estava lá como ouvinte. Entre os três capitães,
o de maior prestígio era Anthony - e também o único que tinha coragem de
debater com o Arthur.
- Mandará inexperientes para o
combate?
- Estaria me questionando se o
seu filho ainda fosse sargento?
Anthony engoliu seco. Era um
homem honrado e não guardava remorsos pela humilhação de Frederick, mas era
impossível não estar magoado. Seu filho havia perdido o posto para o bastardo.
- Então, senhor, serão Elesehr,
Lothar e o bastardo, os responsáveis pela invasão?
- O bastardo é um sargento,
preste o devido respeito aos seus subordinados, ou eu mesmo o desafiarei a um
duelo em defesa da honra de meus homens.
Anthony pensou em mil respostas
para o seu senhor. "Honra de um bastardo?" foi até a ponta da sua
língua, mas ele engoliu de volta. Ninguém tinha nenhum amor por Galwin, mas ele
era sargento por mérito próprio. Sob o comando de Arthur, nada se ganhava por
base de favores, apenas por méritos. O general sabia que seu senhor não tinha
afeição pelo sobrinho, mas agora havia algum respeito.
Apesar de que o bastardo poderia
morrer enfrentando os Blacktide e isso seria a resolução para alguns problemas.
- Sim, senhor. Os sargentos Elesehr,
Lothar e Galwin liderarão o ataque. As tropas deles já estão organizadas?
- Essa será a sua tarefa. Os três
foram nomeados recentemente e ainda não têm tropas definidas. Uma unidade de
arqueiros para Elesehr, uma de infantaria para Lothar e uma unidade de
infantaria para Galwin. Caso eles falhem, enviaremos mais trezentos homens e
aniquilaremos os Blacktide.
- Então, o senhor considera a
possibilidade de falha?
- Se eu der homens experimentes
para sargentos novatos, eles não aprenderão nada! Os homens farão o trabalho por
eles e ainda ficarão insatisfeitos por serem liderados por garotos. Se eles não
vencerem com a própria estratégia, a própria tática, a própria força, não
aprenderão nada e isso só será problema para mim. É melhor ter poucos homens
fortes do que muitos fracos. Isso será uma conquista e um teste. Não só para os
três, como para todos os trezentos.
- Muito sábio, senhor. E depois de
resgatarmos os Dorgauld? Qual será nosso próximo movimento?
- Os sargentos que voltarem vivos
serão os responsáveis por manter minhas terras enquanto eu estiver na campanha
de Robb. Dos trezentos, duzentos marcharão conosco e cem ficarão aqui, junto da
guarda. Se voltarem apenas duzentos, cem marcharão e cem ficarão. Se voltarem
apenas cem, os cem ficarão.
Arthur olhou gravemente para cada
um de seus subordinados. Ele sabia que era temido por quase todos ali, exceto
Anthony e Sabin, o que o enojava. Queria homens corajosos o suficiente para
falar o que pensavam, para apontar as falhas de seus planos, não maricas que
lamberiam suas botas caso ele ordenasse. Infelizmente, naquele momento, eles
eram tudo que ele tinha - mas, a guerra mata os fracos e fortalece os sortudos,
o que resolveria essa questão por si só.
- Alguma dúvidas, senhores?
Todos assentiram com a cabeça em
negativa.
- Estão dispensados.
Os subordinados se levantaram e
foram cuidar de seus afazeres. Arthur segurou o ombro de seu filho e o impediu
de sair.
- Filho - o pai tinha que olhar
para baixo, pois o jovem mal alcançara sua cintura. Ele realmente queria
que Tony aprendesse a governar suas terras, pois daria a vida pelos Stark caso
fosse necessário e não podia deixar um filho fraco para cuidar de seu legado. -
Espero que esteja aprendendo mais a cada dia.
Tony tentava disfarçar o sono e o
tédio.
- Sim, pai, estou aprendendo. Não
se decepcionará.
- Que bom. Pois, quando os três sargentos
voltarem da batalha, você escolherá de qual deles será escudeiro. E, nas
próximas batalhas, você estará presente.
Tony gelou por dentro. Muitos
jovens da sua idade já se imaginavam capazes de liderar tropas e vencer guerras,
mas não era o caso do herdeiro. Para ele, assumir as responsabilidades do pai
era um mal necessário e desejava profundamente que só precisasse fazer isso em
tempos de paz.
Porém, se limitou a responder:
- Sim, pai.
terça-feira, 8 de maio de 2012
Atrás das Grades
Soou a sirene, hora de recolher. Cada um num ritmo vagaroso parando de fazer o que fazia e se dirigindo, sem a menor pressa, para os corredores. No começo, eu fazia careta na hora de recolher - todos faziam -, mas chega uma hora que já é natural. Estar dentro da cela é tão normal para um presidiário quanto estar dentro de um escritório é para um cidadão: é onde passamos a maior parte dos nossos dias não fazendo nada.
Eu estava sentado num banco, olhando os outros jogarem bola. Minha cara era sempre a mesma, não importava se fizesse frio, calor, sol, chuva, se jogavam bola ou se espancavam alguém no meio da quadra. Alguns já me conheciam, outros haviam chegado depois da minha última estadia aqui. Deve ser a terceira vez que venho parar nessa jaula. Deve fazer algumas semanas que eu voltei e até que passou rápido. Não é tão ruim depois que se acostuma.
Levantei desleixado e fui arrastando os pés em direção ao portão. Os guardas só olhavam, sabiam que ninguém iria tentar nenhuma gracinha, mas sempre olhavam com cara de emburrados. Palhaços. É só meia dúzia de presos se revoltarem que metade se borra todo. Alguns dos meus “colegas” ainda mantinham a empolgação do jogo, se empurrando e se xingando. Outros pareciam imitar os guardas, fazendo bico e olhando de cima p'ra baixo. Nada havia mudado.
Enquanto andava, entrando aos poucos na fila que se formava no caminho para o portão, minha visão começou a escurecer. Uma sombra começou a cercar as bordas dos meus olhos, como fumaça, deixando apenas dois pequenos globos visíveis no centro. Pisquei e tudo voltou ao normal – pensei que fosse sono. Continuei andando e as sombras voltaram. Devagar, mas perceptíveis, pisquei e elas se afastaram, mas não por completo. Ficou tudo negro, pisquei e um pequeno globo se abriu e logo se fechou de novo. Senti meu ombro esbarrar no portão aberto, mas já não enxergava nada. Senti minha cabeça pesar no meio da escuridão, comecei a piscar repetidamente, tentando fazer minha visão voltar, mas não funcionava. Cai de joelhos sentindo tontura, esfreguei os olhos, pisquei, pisquei, pisquei, pedi por ajuda sem ser atendido, arregalei os olhos, mas tudo era negro. Ouvi a batida grave do portão atrás de mim. Ouvíamos o portão batendo todos os dias, mas, dessa vez foi mais sonoro, pareceu até ecoar, como se tudo fosse vazio ao meu redor.
Aos poucos, minha visão foi retornando, mas ainda limitada, como se eu estivesse me acostumando a enxergar no escuro. E realmente estava.
Olhei para o portão, ainda fazendo careta para forçar os olhos, e pude observá-lo de perto. O ferro parecia enferrujado, como se estivesse abandonado há décadas. Cheguei mais perto e o fedor de ferro desgastado se tornou nítido. Havia ferrugem em toda a parte. Ele estava realmente apodrecido e não era impressão minha. Encostei minha mão no ferro e olhei para meus dedos: estavam imundos. Não era ilusão. A visão, o cheiro, o tato, era real.
Mas, que diabos era aquilo tudo?
Olhei ao meu redor. Meus olhos já pareciam estar normais, limitados apenas pela escuridão do corredor. Caminhei podendo ver apenas a silhueta do outro portão que levava até a ala B1. Cheguei perto e ele parecia estar igualmente desgastado, todo cinza e negro de ferrugem e imundice. Tive que forçá-lo para sair do lugar, fazendo um rangido estridente, longo e incômodo. Fiquei um tempo parado na passagem, tentando enxergar algo - em vão. Bati palmas limpando as mãos e entrei.
Dentro da ala B1, pude ver apenas as barras das celas e a porta para o corredor da ala, nada mais. Olhei para as paredes, para o teto, para o chão. Minha única noção de espaço eram as barras e a porta. Andei, ficando mais ou menos no centro da ala, insistindo em tentar ver algo. Após alguns instantes, eu desisti e pus-me a andar em direção ao o portão.
Atravessei, passei por um corredor curvo, tendo que me guiar com a mão na parede. Mal vi a porta na minha frente e precisei apalpá-la para achar a maçaneta. A textura de tudo era extremamente decadente e suja. Engoli seco, segurando o nojo. Talvez, não ver era melhor do que ver o que eu estava encostando.
A ala B2 se encontrava na mesma situação. Acreditar que aquilo era real era estúpido demais e, ao mesmo tempo, negar aquelas sensações seria inútil. Até o ar que eu respirava era diferente, mais parado, pesado, escasso, mas era ar. Não podia enxergar as paredes e nem o chão, mas podia senti-los a cada passo. Não podia enxergar o teto, mas tinha noção de que havia algo acima de mim.
Caminhei, tentando olhar cada uma das celas. Tudo no mais absoluto silêncio. Alguns diriam que o lugar parecia morto, mas até morte parecia distante ali. Nem vida, nem morte. Nem pós-vida e nem não-vida. Apenas silêncio e escuridão. Mas, as barras das celas, de alguma forma, me aliviavam: elas ainda existiam, diferente de todo resto. Elas me traziam a segurança de que eu ainda estava no mesmo lugar e que as coisas ainda estavam onde deveriam estar. Fiz questão de olhar na direção de todas as celas, uma por uma. Esquerda e direita, esquerda e direita, esquerda e... E nada na direita.
Eu conhecia bem aquela prisão e todas as celas pareciam estar em seus lugares, exceto a B14. Ela estava sem grades. Me aproximei, tentando enxergar o que havia de errado. Senti a parede com a mão e estiquei um pouco o pescoço para dentro do bloco vazio, onde deveria ser uma cela. Os olhos espremidos, tentando flagrar algo. E então, um movimento. Dei um passo para trás, sem entender o que havia visto. Outro movimento. Respirei fundo, tentei ignorar o suor escorrendo pelo canto do meu olho, me mantive firme. Outro movimento. Algo estava pulsando.
Então, um grito. Agudo e rasgado, cheio de dentes. Pulei para trás e cai no chão. Olhos arregalados, queixo tremendo. Uma mão com garras longas e finas se esticava, tentando agarrar algo, os olhos esbugalhados, cheios de maldade, me encaravam fixos, a boca repleta de espinhos e cravos desordenados, a pele pálida, nitidamente suja, solta aos ossos, quase nenhuma carne. O bicho se esticava, arranhando o chão, rosnando e gritando bestialmente. Seja lá o que era aquilo, queria me alcançar. Mas não podia andar, estava preso. Parecia estar preso pelos pés a algo. Dane-se, eu não precisava saber mais do que já havia visto.
Aquilo foi o suficiente pare eu me desesperar. Dei um encontrão na porta que eu sabia que estava atrás de mim e subi correndo pelas escadas. Cheguei à ala B4. Tudo continuava na mais completa sombra, mas isso pouco importava naquela hora, eu precisava correr, não importava por quê, não importava para aonde.
Segui para minha direita, aonde eu sabia que teria uma porta para ala B3. Disparei em passos largos, mas apenas três, até uma garra vir do teto, em direção ao meu rosto. Meu instinto mais puro e primitivo me salvou, me fazendo girar o corpo e cair no chão, olhando para cima. Tinha outra daquela criatura no teto, presa pelo tronco. O bicho gritava enquanto empurrava o teto, tentando se soltar, e me encarava, lançando uma garra em minha direção em meio aos solavancos contra o concreto em sua cintura. Eu senti meu coração esmurrando meu peito, como se quisesse sair de dentro de mim com um pontapé.
Levantei cambaleando e corri. Atravessei a porta, dei mais alguns passos, mas tive que parar, desorientado. Meu desespero era tanto que havia parado de prestar atenção no caminho e simplesmente não tinha mais a menor noção de onde estava. Olhei ao meu redor identifiquei algumas barras das celas, uma porta no caminho oposto da qual entrei e uma outra porta na parede oposta às celas, provavelmente para uma escada. Pensei em qual caminho seguir e este foi o meu maior erro daquele dia.
Eu não sei por quanto tempo aquele som já estava lá até eu percebê-lo, mas eu percebi. Um rosnado. Baixo, contínuo, semi-rouco. Mais do que uma ameaça, era um aviso. Aviso de que iria atacar. Me dei conta de que havia um espaço vazio entre as barras. Havia uma cela aberta. Dela, um passo depois do outro, uma figura não muito alta, fina e pálida, saiu. Este não estava preso em nada, apenas mantinha os braços atrás do corpo. Eu hesitei. Ele mostrou as presas.
E avançou.
Baba e cuspe transbordaram da investida. Pulei para a esquerda, deixando o bicho passar direto. Por trás dele, pude ver seus braços presos um no outro pelos punhos, com as mãos entrelaçadas, fixadas uma na outra. Rapidamente, ele se virou em minha direção e veio de novo.
Dessa vez, interrompi o ataque com um chute no queixo do monstro, empurrando-o para trás. Ele capotou no chão, mas logo se levantou, compensando os tropeços com a fúria. Correu, ainda cambaleando, para cima de mim. Esquivei pela direita e passei a perna na dele, fazendo-o tropeçar novamente. Aproveitei a chance e corri em direção à escada, encontrando a parede. Tateei o concreto, mas nada de porta. Ouvi um latido molhado atrás de mim e me virei para me defender.
O monstro já a alguns centímetros do meu rosto. Segurei sua testa e seu ombro, tentando empurrá-lo, mas dessa vez, eu é que fui para o chão. Tombei com força e ele veio junto. A boca chegando a menos de um palmo do meu rosto, o bafo insuportável e a força movida pelo frenesi cego. Empurrei, chutei e soquei. Minha única vantagem era o bicho não poder usar os braços, senão, teria sido meu fim ali mesmo. Depois de alguns empurrões, consegui afastá-lo o suficiente para chutá-lo, fazendo-o cair para trás. Tentei me levantar, me arrastando no chão, mas meu braço falhou e eu só pude me afastar, enquanto ele preparava outro bote.
Ainda no chão, braços tremendo descontroladamente, respiração disparada, coração me chutando por dentro, suor por todo o corpo, ele veio. Tentei chutá-lo, mas não tive força, atingindo apenas sua coxa, fazendo-o despencar em cima de mim. Empurrei seu queixo para o lado com as duas mãos, mas ele logo girou e se apoiou com os joelhos, me atacando. Fui empurrado contra a parede, ele com um joelho e um pé no chão, ganhando estabilidade, usando a força do tronco. Segurei o queixo e a testa, empurrando com o que ainda restava da minha força. Berros, empurrões, suor. Meu braço cedendo.
A cada segundo, um centímetro mais perto e o bafo abissal se aproximando. Dentes como navalhas abertos desejando fechar com meu corpo dentro. Tremedeira, calafrios, desespero. Meus braços cederam, meus olhos fecharam. Meu corpo entregue.
E o mundo, aos poucos, foi clareando.
Alguns risos. A voz de um policial:
- Hei, Trevor. Caiu de maduro?
Uma mão me segurou pelo braço e me ergueu do chão.
Meus olhos ardiam, senti frio pela roupa encharcada. Aos poucos, a visão foi se acostumando.
Alguns me olhavam espantados, outros apenas riam.
- Olha só p’ra esse cara. Parece que viu um fantasma. Hei! Trevor! Não diga que se borrou também.
Silêncio. Eu ainda piscava pelos olhos ardendo.
- Tsc, leva logo ele p’ra jaula, não temos tempo p’ra palhaçada.
Fui conduzido até minha cela. Confuso.
Ouvi o som da grade estalando repetidamente enquanto se fechava, finalizado pelo bater do portão de aço. Cocei o rosto, esfregando a palma da mão nos olhos e puxando as bochechas e a boca para baixo com os dedos. Tontura. A blusa estava mais seca, mas ainda incômoda.
Ser presidiário era moleza. Tudo sempre igual, sem novidades. Assaltar para viver já nem parecia arriscado.
Mas, se eu já estava acostumado com um inferno, um outro começou a surgir e eu simplesmente não estava preparado para aquilo.
sexta-feira, 27 de abril de 2012
1 – Galwin
- Bastardo!
Em tempos de guerra, há muita ascensão e muita morte. Patrulheiros da cidade podem virar heróis de uma nação e aldeões pacatos podem dar um último beijo nos filhos e marcharem em direção à guerra. Entretanto, além dessas vítimas da fortuna, há aqueles que nasceram para a guerra. Para esses, não é uma questão de sorte ou oportunidade. É meramente seu destino se cumprindo.
Galwin Snow, o bastardo da família Bjorn, ouviu claramente o chamado de seu sargento, Frederick. Apesar de jovem e sem nenhum título de nobreza, o recém empossado sargento já demonstrava grande soberba. Era filho de Anthony, um dos capitães e conselheiros de guerra de lorde Arthur Bjorn, e clamava para a prosperidade de seu patrono, para que seu nome também prosperasse e, quem sabe, adquirisse o título de "sor".
- Estou falando com você, bastardo!
Frederick gritou pelo seu subordinado de longe, para que todos vissem a cena. Galwin, à princípio, continuou selando o cavalo de viagem do capitão Anthony, conforme seu tio, Arthur, havia ordenado. Quando o jovem sargento se aproximou, Galwin interrompeu seus afazeres e se virou para seu comandante, mas ele não abaixou o tom de voz.
- Você é a prova viva de que todos os bastardos são incompetentes, sabia?!
Galwin não reagiu.
- É incapaz de cumprir uma ordem simples, bastardo! Por que não preparou a minha mochila e a minha algibeira e não poliu minha armadura, como ordenado?
- Porque não sou seu escudeiro - Galwin respondeu, meio justificando, meio afrontando.
- Como ousa?!
Frederick desferiu um soco no estômago de Galwin que acertou-lhe em cheio. Talvez ele acreditasse que seu soldado não fosse reagir e aceitaria a humilhação, mas não houve nem tempo para pensar. Galwin ergueu seu braço e acertou um cruzado no rosto do sargento. Frederick deu um passo para trás, incrédulo pela reação do bastardo, o que deu oportunidade de receber mais um soco no rosto. Antes que o terceiro golpe viesse, a escaramuça foi interrompida.
- Vocês dois perderam o juízo!? - Era sorArthur Bjorn.
Naquele momento, todo o pátio do quartel de guerra prestava atenção nos dois jovens, porém, quando o patrono se fez notar, todos sentiram um frio no umbigo, como se a neve do norte tomasse posse de seus corpos. Resoluto e obstinado, Arthur estava a vinte metros dos dois e não se deu o trabalho de andar até eles. Sua reprovação era tão evidente quanto o frio.
- Um sargento patético e um soldado patético!
Frederick estava morrendo de medo. Poucas vezes tivera contato com Lorde Bjorn, fazia poucas semanas que fora nomeado e já decepcionara seu suserano. Galwin manteve a expressão séria enquanto ouvia seu tio. Como bastardo, nunca precisou fazer nada para desapontar ninguém, só o fato de ser quem era já contava como decepção. Logo, qualquer juízo de valor negativo a seu respeito já era cotidiano e não o perturbava.
- Não sei o que é pior, um sargento que trata seu soldado como capacho, um soldado que não obedece ao sargento ou as duas criancinhas trocando soquinhos em pleno pátio do quartel!
Anthony estava ao lado de Arthur, inexpressivo. Por dentro, temia pelo filho, mas não havia nada a se fazer, apenas concordar com qualquer decisão de seu patrono.
- Diga-me, Frederick, já viu Galwin lutando?
O medo inibiu qualquer resposta.
- Responda-me!
O mediu impeliu uma resposta.
- S, s, senhor, eu não...
- Não perguntei nada ao seu respeito! Perguntei sobre Galwin! Vejo que subestima seus homens, sargento.
Apenas medo.
- Galwin, perdeu a cabeça? Quem foi o mestre de armas que te ensinou a levantar a mão contra seu sargento?
- Victor foi meu mestre de armas e ele não me ensinou a levantar a mão contra nenhum sargento, mas também não me ensinou a apanhar calado.
- E se eu julgar que você merece uma surra pela sua indisciplina, levantaria a mão contra mim também?
- Não, pois seu julgamento seria justo, diferente do de Frederick.
Alguns juraram que Galwin realmente levaria uma surra naquele momento, porém, suas respostas pareceram aprovadas por Arthur.
- Peguem espadas de madeiras - ordenou Arthur.
- Senhor? - Frederick estava confuso.
- Querem brigar, não querem? Então, brigarão como homens, mas sem sangue no meu pátio. Peguem as espadas e resolvam suas diferenças, é uma ordem.
Anthony engoliu seco. Prontamente, um dos soldados do batalhão de Frederick estendeu uma das armas de treino para o sargento que a pegou e se virou para seu rival. Galwin já estava preparado, pegara uma espada qualquer no momento em que sor Bjorn ordenara. O patrono estava impassível.
- Quero fazer isso a muito tempo, bastardo.
A bravata de Frederick foi respondida por um golpe vertical da esquerda para a direita. Ele mal teve tempo para bloquear o ataque e Galwin desferiu outro golpe vertical no sentido contrário. O sargento defendeu desengonçado, mais por sorte do que por técnica, pois ainda não havia se recuperado da ofensiva inesperada de seu subordinado e um terceiro ataque acertou sua canela, fazendo sua perna doer e lajetar. Galwin deu três passos de distância e preparou a espada em guarda.
Frederick avançou e tentou alguns golpes que até eram bons, mas que Galwin bloqueou sem dificuldades. O que o sargento não havia reparado era: Galwin era canhoto e todos os seus movimentos eram invertidos. O bastardo, por sua vez, já estava mais do que acostumado a enfrentar oponentes destros. Frederick insistiu nos ataques, até que seu rival aproveitou sua guarda aberta e socou seu abdômen, fazendo-o se curvar de dor.
Uma joelhada violenta acertou seu queixo e ele tropeçou para trás, caindo sentado na neve. A expressão de Galwin não mudara nada, permanecia séria e fechada desde que falara com Arthur. Frederick percebeu que estava perdendo.
Sem se levantar, o sargento chutou o joelho de Galwin, forçando-o a se ajoelhar de dor e desequilíbrio. Frederick aproveitou e acertou outro chute, dessa vez, no rosto do seu subordinado, jogando-o para o solo. Sem perder tempo, levantou e atacou Galwin. Para a frustração do sargento, o bastardo já não estava desprevenido e bloqueou o ataque com sua espada de madeira.
Frederick preparou um segundo ataque, mas antes que se concluísse, Galwin rolou para a esquerda e saltou, erguendo-se novamente. Logo que ficou de pé, se esquivou para trás, pois o sargento já golpeava seu rival impiedosamente. Galwin evitou alguns ataques até que Frederick vacilou e abriu espaço para um contra-golpe.
- Sabe de uma coisa, sargento? Você devia voltar a ter umas aulas com o mestre de armas - Galwin declarou seu cansaço pela escaramuça.
O bastardo acertou uma espadada violenta no punho de Frederick que teria decepado sua mão caso as armas fossem de verdade - em vez disso, torceu o membro num ângulo doloroso, evidentemente fraturado. O sargento gritou de dor e largou a espada, mas Galwin não estava satisfeito. Cruelmente, desferiu um golpe horizontal, de baixo para cima, na virilha do seu oponente, que fez todos os espectadores virarem o rosto da cena, apiedados. Mas, ainda houve tempo para um ultimo golpe: Galwin ergueu sua espada e estocou contra o rosto de Frederick, afundando o seu nariz para dentro de sua face.
Havia sangue no pátio.
Todos estavam horrorizados com a consequência do combate. Já não era esperado que o bastardo loiro de olhos verdes derrotasse seu sargento, mas sua brutalidade foi ainda mais surpreendente. Após o espetáculo, quando cada espectador se convenceu de que Galwin Snow realmente derrotara Frederick, todos olharam para sor Arthur Bjorn, aguardando um veredicto. E ele continuava impassível.
- Frederick - ele começou, apesar do sargento parecer estar alucinado de dor, rolando pela neve -, parece que levará alguns meses para poder voltar a lutar, logo, está desempossado de seu cargo.
Muitos ficaram incrédulos.
- Galwin Snow - Arthur fez uma pausa, após soletrar o nome de seu sobrinho bastardo -, poucos soldados lutam como você e isso é de se admirar. Você acabou de ser elevado a sargento e está responsável pela tropa que estava sob o comando de Frederick. Parabéns.
O patrono deu meia volta, mas, antes de se retirar, falou para só Anthony ouvir.
- Esse é o preço por subestimar um soldado.
E marchou para seus aposentos.
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