terça-feira, 10 de novembro de 2015

Novo Blogue!

Senhoras e senhores, venho por meio deste anunciar que este blog se mudou para um novo endereço:

http://aeradoabismo.blogspot.com.br/

A proposta continua a mesma, mas ampliada: estarei construindo todo um cenário e uma narrativa contínua, em vez de fragmentos soltos.

Espero que gostem!

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Faça-me Mal

Depois de transcender a morte, a vida passou a parecer nojenta.


Eu caminhava pelas ruelas e becos a caminho do Centro para pegar a barca. O caminho não importava, se era vigiado pela policia ou infestado de indigentes, ninguém se atreveria a se meter comigo. No começo, mostrei as consequências aos desavisados por mim mesmo. Depois, a maioria já sabia que não era um qualquer passando por aqueles trechos. Então, conforme aprendi a usar melhor os meus dons, apenas minha presença bastava para repeli-los. Eu andava por onde bem entendesse.


Chegando ao Centro, segui o meu caminho à estação. Uma meretriz se reclinou, exibindo um decote toscamente exagerado, me convidando para uma “conversa” e elogiando o meu terno. Ao ser ignorada, pôs-se a gritar injúrias e dizer que ganhava mais em uma semana do que eu no mês. Sua sorte foi que eu já havia me alimentado naquela noite, por isso foi poupada - mas seria um prazer tê-la como refeição da próxima vez que nossos destinos cruzassem.


Mais a frente, um morador de rua pediu moedas para completar uma refeição. Era óbvio que o que ele queria era álcool, e que diferença faria? Peguei qualquer punhado de moedas na minha carteira e entreguei-o. Ele reclamou, dizendo que aquilo não daria para nada, quase fazendo meu sangue ferver pela insolência. Deixei-o falando sozinho enquanto esperava o sinal abrir para atravessar a rua. Doar aquelas moedas fez bem à minha pessoa. Colaborar com o vício alheio sempre é uma boa ação.


Chegando ao outro lado, um vendedor ambulante gritou muito próximo de mim, me chamando de patrão e me oferecendo softwares pirateados. Eu ignoraria, se não conhecesse a figura incômoda. Fingi que dispensava as ofertas e, ao passar ao lado dele, ouvi-o sussurrar que as encomendas já haviam sido encaminhadas - encomendas de outros produtos que ele também intermediava. Seguindo o protocolo, continuei no meu rumo como se nada tivesse acontecido.


Atravessei a roleta usando o meu cartão de passagens pré-pago e aguardei liberarem os portões. Chequei o relógio de pulso e me tranquilizei: tinha tempo de sobra para chegar à reunião. Provavelmente, muitos ao meu redor pensariam que eu estaria voltando para casa após um dia de trabalho, mas na verdade o trabalho estava apenas começando para mim. Provavelmente, a reunião levaria metade da madrugada, o que me daria tempo de cuidar de alguns projetos pessoais antes de voltar a dormir.


Os portões abriram e eu prossegui para a barca. Passei pela passarela junto da meia dúzia de passageiros, entrei na embarcação velha e precária e me sentei ao fundo, evitando companhia. Inconvenientemente, um homem sentou ao meu lado. Tentei ignorá-lo, mas o idiota esbarrou um cigarro aceso na minha mão, provocando uma pequena queimadura, me irritando profundamente.


- É proibido fumar aqui dentro - reclamei entre os dentes.


- Desculpe-me, senhor. Machuquei você? - Ele parecia um pouco sarcástico. Refleti se deveria ensiná-lo uma lição aproveitando que não tinha quase ninguém na barca, ou se deveria reservá-lo destino pior.


- Incomodou! Quem você pensa que é? Apague essa porcaria antes que me queime de novo - eu me segurava para não explodir de raiva. A queimadura passou a arder bastante depois de alguns instantes.


- E qual diferença faria pra você?


Observei-o por um instante.


- Está me provocando?


Ele tragou o cigarro lentamente, parecendo saborear a fumaça entrando e saindo.


- De forma alguma. Realmente não imagino que diferença esse cigarrinho faria a você. Poderia me esclarecer?


Minha mão inteira ardia até o meu pulso.


- Você com certeza não sabe com quem está falando.


- Sei melhor do que você pensa.


Quase paralisei com a resposta inesperada.


- Ah… Não me diga que é um caçador - debochei, abrindo um sorriso e exibindo minhas presas através dos meus lábios semiabertos. - Vai puxar uma pistola e tentar me eliminar aqui mesmo?


- Não sou um caçador. Não vim armado. Você não respondeu a minha pergunta ainda. Esse cigarro faria diferença pra você?


- Eu poderia te acorrentar e te alimentar de cigarros até você morrer lentamente, seu verme.


- Não é o seu padrão. Não sou estudante, já passei dos vinte e um anos e você não é tão paciente assim.


- Quer brincar de dialogar antes do confronto, caçador? Que charmoso, quase poético. Mas não se preocupe, esses estudantes não fazem falta à sociedade. Já estão perdidos de qualquer forma, eu apenas aproveito eles para mim.


- Se sente vingado com isso?


Ergui uma sobrancelha em interrogativa.


- Vingado do rapaz que bateu em você e roubou o seu lanche (e, às vezes, o dinheiro de passagem também) no colégio até o seu terceiro ano e você nunca teve colhões pra enfrentá-lo, até se tornar um sanguessuga maldito e passar a se alimentar desse tipo de valentão?


- Ora, ora, estudou direitinho. Pena que nada disso vai impedir a sua morte.


Ergui meu braço para agarrá-lo pela traqueia, mas senti meu corpo mole e impreciso. Ele aproveitou e enfiou o cigarro com vontade na minha mão erguida, queimando intensamente dessa vez.


- Já que não respondeu, eu respondo por você. Dentro desse cigarro tem uma agulha envenenada, obviamente que o veneno está só na ponta acesa e não no filtro. De qualquer forma, só faz efeito na pele ou no sangue, inalar não causa nada. Esse veneno causa uma leve dormência em quantidades mínimas e um completo relaxamento muscular numa dosagem pequena. Uma seringa cheia pode causar sequelas num boi. Sei que você não é dos mais resistentes, mas garanti uma dosagem boa, sinta-se lisonjeado antes de morrer. De novo.


Meus ombros despencaram e eu senti minha cabeça recostar involuntariamente na poltrona. Tentei me levantar, mas minhas pernas mal se moviam. A raiva fulminava por dentro, mas era impossível expô-la. Pensei em gritar, chamando-o de assassino, mas minha cabeça ficou zonza e pesada. Mal conseguia dosar minha respiração.


- Essa é a falha de vocês, querem manter as aparências e se descuidam nos lugares mais óbvios, tipo no meio de uma baía. Você fez tantos contatos e nenhum deles pode te salvar agora - ele transitava entre a seriedade e o divertimento. - Há quanto tempo você entrou pra família? Nem dez anos e já se acha alguma porcaria. Obrigado pela sua idiotice, graças a ela, as dezessete famílias que perderam seus filhos serão vingadas, mesmo sem saber disso.


A barca deu um solavanco e eu quase caí no chão sem conseguir me segurar. O homem me pegou pelo ombro e me trouxe para perto dele, fingidamente amigável.


- Vem cá, amigão, deixa eu te dar uma ajudinha.


Ele puxou o meu braço pelo ombro dele e me ergueu sem dificuldades.


Nunca senti tanto ódio. Antes de transcender a morte, eu sentia medo. Depois, aprendi a transformar tudo em desprezo. Ódio era algo pouco usual até agora. Fúria se tornara comum, mas não o ódio - quando você elimina o motivo da fúria, não há razão para odiá-lo. Até ter uma década de poder escorrendo pelas mãos sem poder reagir. Por fora, eu era um corpo embriagado pela droga, enquanto que por dentro eu era um incêndio de cólera. E não podia fazer nada, apenas ser carregado pelo meu assassino.


- Como deve ser morrer e continuar vivo? Foi doloroso? Agoniante? Você viu a luz no fim do túnel? - Ele brincava, contendo o deleite enquanto caminhava comigo para a saída lateral da barca. - É como se afogar? Bom, se você não sabe como é se afogar, vai descobrir agora. Aproveita e lembra como é beber água, como as pessoas normais. As vivas, sabe? Só que dessa vez, não tem nada depois do afogamento. Foi um bom papo, amigão.


Estávamos na beirada da grade de segurança. A água corria forte e estávamos longe de qualquer terra firme. Meu corpo afundaria e apodreceria no fundo, sem que eu pudesse fazer nada. Eu odiava assumir aquilo, mas o meu fim havia chegado.


- Seu… Caçador… Filho da… - Foi tudo que consegui balbuciar.


Ele ficou sério e me encarou por um tempo.


- Eu não sou um caçador. Sou um juiz.

E me empurrou na água.


sexta-feira, 5 de abril de 2013

Abismos



Salão principal do castelo. Melodia dos Trovadores Etéreos no ar, a banda mais cara e sofisticada de Centrália. Lordes poderosos, damas requintadas e cavaleiros renomados bailando e degustando vinho. Tédio.


O Marquês Luthenburgo sempre apreciou bailes de máscaras. Este evento se tornou o mais famoso de Colinas Álgidas, esta cidade fria onde vivo. Uma vez por ano, um grupo seleto de convidados é trazido para seus aposentos para apreciar o melhor que o reino pode oferecer. Os que ficam de fora sentem inveja e remorso. Os que estão dentro são privilegiados, a mais alta classe da sociedade. Vir uma vez não é garantia de voltar no ano seguinte, apenas os nobres que se destacam na politicagem e na intriga local têm acesso ao baile - ou, aqueles que são alvos de interesse de algum bom amigo do marquês ou dele próprio.

Para mim, noite de desfrutar o banquete. De forma alguma irei saborear diversas iguarias, não posso me dar esse luxo - não aqui. Preciso escolher uma iguaria e conquistá-la. A escolha sempre é a parte mais difícil. Não aceito uma qualquer, mas também não posso ter o descuido de escolher uma já comprometida ou sob a proteção de um lorde presente. Precisa ser a iguaria certa, descompromissada, elegante e bela.

Caminhei pela mesa do banquete observando. Jovens e velhos bailavam. Grupos conversavam pelas mesas. Alguns tramavam pelos cantos mais discretos. Muitos cavalheiros desejando cortejar uma bela dama. Muitas damas desejando ser cortejadas pelo cavalheiro certo. A escolha é sempre muito delicada. Alguns jovens preferem conquistar mais renome para poder escolher uma candidata de mais alto nível. Outros, menos inteligentes, se demonstram ansiosos demais e acabam casando com a dama menos abastada, ou até cortejam uma dama já casada por engano e conquistam um inimigo vingativo. Todo o baile é um evento dentro do jogo da nobreza. Um jogo tolo e fútil - e os mortais nunca se cansam desta bufonaria.

Em pontos estratégicos, algumas damas aguardavam um convite para dançar. Uma jovem esbelta num vestido prateado decorado com pedras esbranquiçadas, cabelos loiros num complexo penteado empinado sobre a nuca e máscara de alça sorria convidativa para mim. Uma mulher de cabelos negros, vestido azul até o chão, decote farto e máscara cobrindo os olhos em formato de uma pequena coroa me observou com ar ferino, quase me desafiando. Uma terceira dama, especialmente bonita, vestido dourado arqueado nos ombros e no quadril, cabelos castanhos claros, lábios carnudos acentuados por uma pinta na bochecha esquerda e máscara com fios de ouro me olhava se fazendo de tímida. Belas, mas insatisfatórias.

Faltava pouco para eu tomar desgosto pelo baile quando, acidentalmente, reparei na sacada do salão. Quase que escondida, estava uma mulher, uma verdadeira dama - alguém que fazia todas as outras moças parecerem plebeias. Vestido de tecidos leves em tons de escarlate e vinho, cintura e busto justos ao corpo delicado, queixo fino, lábios e nariz estreitos e arrebitados, cabelos negros em cachos fartos, olhos azuis por detrás de uma máscara rubra e um leque da mesma cor abanando suavemente sua face. Toda dama de verdade sabe que o leque é a marca registrada da verdadeira elite.

Senti meus caninos pulsarem.

Enquanto eu a observava, ela discretamente me dirigiu o olhar e pareceu desprezar o que viu tanto quanto tudo naquele baile e voltou a olhar os mortais. Eu sorri enquanto era esnobado e logo ela retornou o olhar, dessa vez apenas indiferente.

E um sutil sorriso surgiu no canto de seus belos lábios.

Andei em sua direção sem rodeios e me posicionei ao seu lado na sacada. Ela voltou a observar as pessoas e eu iniciei o cortejo:

- É de partir o coração ver uma dama tão elegante com uma expressão tão entediada.

Ela soltou uma pequena risada sem humor.

- É uma pena os convidados do marquês não terem coragem de tirar uma mulher de verdade para dançar.

- Não insulte os convidados do marquês dessa forma, vários deles são corajosos e estão dançando com algumas mulheres de verdade. Mas, no seu caso, só a coragem não basta. Você é uma dama que também exige ousadia para se aproximar.

Ela sorriu satisfeita.

- Conde Victor Silverealm, ao dispor.

- Lady Amélia Roseheart, é um prazer.

- Com todo respeito, milady é uma dama muito notável. Não estava aqui ano passado, não é?

- De fato, não estava. Sou prima do Barão Augustus, estou em sua residência há poucos meses. Eu viria com ele, mas uma febre o acometeu e, infelizmente, tive de vir representar nossa família sozinha.

- Com certeza está muito bem representada. Sua família domina o comércio de tecidos do reino, não é de se admirar que milady traja o mais belo vestido da noite. Lembrarei de encomendar um traje de gala novo na próxima semana.

- Então, garantirei que fique impecável, milorde. Um cavalheiro que salva uma dama do tédio merece respeito e atenção na confecção de um traje.

- Fico lisonjeado com a sua cortesia. E o que a senhorita está achando da cidade?

- Melhor do que a capital. Menos sujeira, menos barulho, menos pedintes.

- Realmente não há vantagem nenhuma em morar na capital, aquela acumuladora de miséria. - O desprezo inicial havia sumido e ela parecia se permitir desfrutar da companhia. Não faltava muito. - Milady aprecia alguma arte?

- Quem não aprecia? Música e pintura são as minhas favoritas. A propósito, esse grupo, os Trovadores Etérios, honra a fama que tem. Pena que os dançarinos não façam jus à música.

Tive de rir do seu sarcasmo.

- Eles são realmente incríveis. Começaram tocando em tavernas e praças, até que foram presos por um capitão interessado em extorqui-los. Felizmente, o povo se revoltou, pois eles faziam a alegria das festas de rua, e o conde da região não só mandou soltá-los, como também se interessou em ouvi-los. Desde então, só se apresentam em cortes.

- Fico feliz que eles tenham tido tal sorte. Vou convencer meu primo a contratá-los para uma festa nossa.

- Não quero insultá-la, mas acredito que o valor que eles cobram esteja além do poder de um barão.

- Tudo bem, promovo-o a conde antes de contratá-los.

- Pelo visto, não sou o único que possuo ousadia nesta conversa.

- Do que serviria a vida sem ambição?

- De fato, de nada serviria.

Confesso que a conversa estava mais interessante do que eu imaginara. Paramos de falar um instante enquanto observávamos o baile. Eu poderia prosseguir a conversa, contudo estava ansioso pela minha refeição. Ansioso pela minha vítima.

- Milady, perdoe minha ousadia, mas não vejo motivo em permanecer nesse salão, se ambos concordamos que isso tudo não passa de um tédio.

Um suave sorriso.

- Sua ousadia é muito bem vinda, milorde.

E então, lady Amélia pôs-se a andar pelas bordas do salão, sem chamar a atenção de mais ninguém além daqueles que já haviam reparado na nossa conversa, direto a um corredor que circulava a lateral do castelo, banhado pela luz lunar. Sem olhar para trás, ela seguiu até uma curva que garantiria que ninguém nos visse do salão e encostou-se em uma pilastra. Seus lábios pareciam me instigar a dominá-los. Seu olhar parecia me desafiar a tocá-la.

Mas seu pescoço era a peça mais encantadora. Sua pele alva e impecável chamava minhas presas com urgência.

Ela parecia achar a situação divertida. Talvez já tivesse enfeitiçado - ou escravizado - outros homens dessa forma. Provavelmente uma devoradora, manipuladora. Que fosse! Naquela noite, ela era o meu banquete.

Já quase tomado pelo instinto, aproximei-me, encaixando nossos corpos, cobiçando seu pescoço e ela interrompeu meu trajeto puxando meu queixo delicadamente para junto de seu rosto.

- Que indelicado, Victor, você sabe muito bem que a conquista começa pelos lábios.

Não posso dizer que fiquei frustrado, pois aqueles lábios mereciam atenção. Ela me olhou com uma mistura de ansiedade e desejo e fechou os olhos, aguardando.

Toquei nossos lábios, beijei sua boca e senti minha essência sendo sugada.

Um vácuo surgiu entre nós. Nossos olhos se arregalaram em susto e tivemos que lutar para separar nossos corpos. Eu pensei que iria me alimentar da vida de uma dama para preencher o meu vazio, porém foi a dama que tentou se alimentar de mim e, para sua surpresa, em vez de absorver vida, absorveu a morte.

Desvencilhamo-nos, eu exibi minhas presas sedentas por sangue em ameaça e ela permitiu que seus olhos ardessem em fogo, revelou um par de asas de morcego e liberou sua aura profana.

- Morto insolente! Como ousa tocar numa dama do Abismo?! - Ela proferiu.

Cuspi no chão.

- Não acredito que eu quase me alimentei de uma meretriz abissal! Este é o meu território! Este povo é o meu rebanho! Aqui não é lugar para uma cadela se alimentar!

- Não tolerarei que um sanguessuga patético me insulte! Este reino acabou de ganhar uma nova dona e ninguém ficará no meu caminho!

- Seus tempos de luxo no Abismo lhe subiram a cabeça! Este reino é meu!

Ela bateu suas asas e saiu do meu alcance antes que eu pudesse atacá-la.

- Conde Victor Silverealm, sinta-se honrado, pois sua existência infeliz acabará pelas mãos de uma verdadeira lady - ela declarou com arrogância, exibindo um maravilhoso sorriso de predadora e sumiu na noite.

Eu não havia lutado tanto para me estabelecer naquela nobreza patética e garantir o meu rebanho para uma meretriz invadir o meu território e ameaçar a minha soberania.

Uma inimiga havia surgido. A primeira notável em séculos.

Eu faria a vadia desejar nunca ter saído do Abismo.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Parto

Primeiro dia:

A porta de minha casa se abriu numa pancada violenta. Levei um susto tremendo.

– Ágata! – Era meu marido me chamando.

– Amor!

Ele estava se apoiando com as mãos pelas paredes e com uma expressão terrível de dor
no rosto. Larguei a comida no forno à lenha e corri até ele. Apoiei seu braço em meu
ombro e o conduzi até nosso quarto. Pensei que não fosse conseguir chegar até lá de tão
pesado e fraco ele estava. Quando enfim consegui deitá-lo na nossa cama, percebi que
ele ardia de febre e suava frio. Entrei em desespero.

– Ágata! Ágata! Minha cabeça! Minha cabeça dói! Pelo amor dos deuses, faça isso
parar! – Ele agarrava minha roupa e me puxava e eu não sabia o que fazer. – Faça isso
parar! Faça isso parar! – Ele repetia até que soltou minha roupa e agarrou a cabeça, se
encolhendo na cama e gritando de agonia.

Corri para a cozinha e preparei um chá. Foi inútil, pois ele não conseguia beber.
Não conseguia se sentar e nem comigo servindo em sua boca ele conseguia engolir.
Derramei chá no meu marido e o sujei todo até desistir.

O drama durou horas. Eu chorava e segurava a mão dele, rezando baixinho para que
aquilo passasse. No meio da madrugada, ele adormeceu. A febre continuava alta, mas
ele enfim descansava. Fiquei aliviada e dormi também.

Mas, antes, rezei para que aquilo nunca mais acontecesse.

Segundo dia:

Meu marido dormiu o dia inteiro. A febre melhorou, mas ele nem sequer se moveu na
cama. Estático. Apenas respirando.

Imaginei que ele estava se recuperando da febre.

Cuidei de meus afazeres domésticos durante o dia e deitei ao seu lado à noite. Adormeci
tranquila.

Acordei de madrugada com um barulho na cozinha. Meu marido não estava ao meu
lado.

Temerosa, fui verificar o som. Encontrei meu marido arfando e agitado remexendo os
armários.

– Amor?

Ele se virou para mim parecendo um bicho faminto.

– Onde está a comida?

– Eu preparei uma salada, deve estar fresca ainda, vou buscar.

– Salada? Salada?! Eu estou faminto e você me vem com salada?! Sabe que eu trabalho
a merda do dia inteiro e quer que eu coma a mesma comida das lebres?! Onde está a
carne?!

Eu estremeci com os gritos dele. Senti vontade de chorar de medo e vergonha.

– Amor, não precisa falar assim...

– Você é uma inútil! – Ele berrou e saiu batendo a porta dos fundos.

Como ele pôde me tratar daquele jeito logo depois de eu cuidar dele? Não aguentei e
comecei a chorar – poucas lágrimas, logo passaram. Fiquei esperando que ele voltasse
até que o dia começou a amanhecer e eu caí no sono.

Mas, antes, rezei mais uma vez para que aquilo nunca mais acontecesse.

Terceiro dia:

Acordei no meio da tarde. Minha cabeça doía um pouco. Devo ter dormido demais.
Levantei e fui até a sala.

Meu marido estava esparramado na poltrona mordiscando um osso. Aparentemente,
ele havia comido uma peça inteira de algum animal. Ele estava sujo de sangue – muito
sangue. No seu rosto, na sua roupa, pela poltrona e pelo chão.

– Amor, o que é isso? – eu não acreditava no que eu via.

– O que é? – ele respondeu sem nem olhar na minha cara.

– Essa sujeira toda! Você podia ter me acordado que eu preparava o seu almoço.

– Já que você quer me servir, faz o seguinte: prepara um chá pra mim, a dor de cabeça
tá aqui ainda – ele disse apontando para a cozinha, ainda sem dirigir o olhar. Senti-me
insultada, mas considerei que ele devia estar doente ainda e fui atender ao seu pedido.

Fui para a cozinha, peguei algumas ervas que ele gosta e preparei um chá bem docinho
para agradá-lo. Levei o chá até a sala e ele me recebeu com mais humilhação:

– Pensando bem, pensando bem... Não quero chá porra nenhuma não. Faz um suco aí
pra mim.

Não pude aceitar aquilo:

– Isso é jeito de se falar com sua esposa?

– Poxa, amor, seu homem tá doente... Vai negar um suco pro seu homem doente?

Respirei fundo para não brigarmos e voltei à cozinha. Joguei o chá fora, peguei algumas
laranjas e comecei a espremê-las para preparar seu suco. Meus dedos já doíam um
pouco quando terminei, peguei o copo e levei à sala. Mas ele ainda não havia se cansado
de me humilhar.

– Quer saber? Quero mais suco não! Trás uma água! – Ele não aguentou e se pôs a
gargalhar. Ria alto e com a boca bem aberta, segurando a barriga.

Meu queixo caiu. Eu não o reconhecia. Ele nunca havia me tratado daquele jeito. Dei
as costas e fui para a cozinha. Respirei devagar tentando segurar o choro - eu não podia
chorar no terceiro dia seguido. E ele gargalhava.

Quando pensei que eu não ia conseguir e as lágrimas iriam transbordar, ele interrompeu
o riso e soltou um gemido doloroso.

Uma única lágrima escapou.

Fui até a porta e espiei meu marido. Ele estava se arrastando pelo chão em direção
ao nosso quarto. Segui cautelosamente. Debrucei-me pela porta do quarto e o vi se
ajeitando na cama. Corpo encolhido. Mãos na cabeça. Gemidos de dor.

O amor foi mais forte do que o medo.

– Amor?

– Ágata, minha cabeça vai se partir ao meio... Está doendo muito... Faz... Faz isso
parar...

E mais um dia se passou na cama com dores e lágrimas.

Dessa vez, esqueci de rezar.

Quarto dia:

Acordei cedo e meu marido não estava na cama novamente. Procurei pela casa e não o
encontrei. Fiquei aflita. Ele estava doente, não podia sair de casa sem me avisar.

Sentei na poltrona e senti o cheiro de sangue seco. Peguei um balde de água e um pano
para tentar limpar. Enquanto eu esfregava, a porta da casa abriu numa pancada e meu
marido entrou. Suado e ofegante. Pelo visto, havia trabalhado.

– Amor, onde você estava? Você não pode sair assim?

– Fui trabalhar. Alguém tem que cuidar dessa casa.

– Mas você está doente, amorzinho, não pode sair desse jeito.

– Sua voz é irritante, sabia?

Engoli seco.

– O quê?

– Isso mesmo que você ouviu! Sua voz enche o saco!

– Amor, o que há de errado com você?

– Uma esposa imbecil, é isso que há de errado comigo!

– Mas, amor... – Eu não queria mais brigar e faria de tudo para acabar com aquilo. Fui
até ele e abri os braços para abraçá-lo. Ele virou a mão na minha cara.

Foi um soco, na verdade. Um soco que me jogou no chão. Primeiro a pancada seca no
meu olho esquerdo, depois a tontura e sensação de vazio da queda e então o chão e a
batida de cabeça contra a madeira. Tudo doía. O olho, a cabeça, a dignidade e a alma.

– Cansei dessa merda! Cansei de você! Cansei da sua burrice e das suas palhaçadas! Sai
da minha frente!

Ele me apanhou pelo cabelo, me ergueu do chão e me arremessou para nosso quarto.
Cai ao pé da cama, ralando os joelhos e os cotovelos e batendo com a cabeça contra o
chão mais uma vez. Ouvi a porta batendo enquanto me recuperava das novas dores.

Eu chorava. Eu apenas chorava.

Um dia inteiro chorando.

Quinto dia:

Meu marido não entrou no quarto. Acordei e a casa estava em silêncio. Ele havia saído
de novo. Achei melhor assim. Depois, fiquei triste por preferir estar longe do meu
marido, mas continuei achando melhor.

Fui para a horta fazer o meu trabalho. Levei apenas a cesta e o chapéu. Mal havia
começado a colher alguns tomates e ouvi um barulho de coisa quebrando vindo da casa.
Meu estômago gelou.

Outra pancada. Sons de vidro se espatifando. Depois, sons de madeira rachando. Sons
da casa sendo destruída por dentro. Fui até a porta dos fundos e espiei.

Meu marido havia enlouquecido. Ele estava quebrando a casa. Chutando os armários
até afundar o pé na madeira. Pegando vasos e arremessando contra a parede. Pegando
gavetas de talheres e quebrando contra o joelho.

Mas ele não parecia só louco. Ele parecia maior. Os músculos pareciam quase rasgar a
pele, muito maior do que sempre foram. E a pele estava estranha também. Estava pálida.
Quase acinzentada. Ele me olhou. Prendi a respiração. Seus olhos pareciam menores
e mais escuros, com olheiras fundas e negras ao redor. Sua expressão era bestial.
Primeiro, pareceu que não me reconheceu. Depois, entendi que ele havia reconhecido
sim, e que havia odiado o que estava vendo. Ele veio para cima de mim e eu corri.

Apenas corri.

Sexto dia:

Acordei no meio da estrada e percebi que havia desmaiado. Corri muito além do que o
raciocínio me permitiria e acabei apagando por exaustão. Minhas pernas ainda doíam
de esforço. Pensei que fosse de noite, mas percebi que o sol começava a amanhecer e
entendi que já era o dia seguinte. Levantei-me e segui pela estrada de volta para minha
casa. Estava mancando um pouco, mas isso era o menor dos meus problemas.

A casa estava vazia e destruída. Estava tudo quebrado. Tudo. Não há como descrever o
que havia pelo chão porquê não havia nada na casa. Só destroços.

Fui até o que havia sido a cozinha, peguei uma faca no chão e a segurei com firmeza.
Fui até o que havia sido meu quarto e sentei no colchão que havia sido parte da cama. E
esperei meu marido chegar.

Mas ele não chegou.

Quando anoiteceu e eu percebi que ele não apareceria, fiz o que tinha que fazer:
levantei-me e comecei a andar. Segui a estrada e caminhei sem parar. No meio da
madrugada, alcancei a cidade e procurei uma taverna. Era lá que eu encontraria a
solução de todos os problemas.

Sétimo dia:

Os quatro aventureiros pagaram a minha janta e o meu quarto numa estalagem. No
dia seguinte, fomos até a minha casa. Mostrei tudo para eles e contei tudo. Eu estava
determinada até começar a falar. Fui lembrando e fui me fragilizando e chorei. Eu não
devia ter chorado, não na frente deles. A única mulher do grupo, uma elfa que trajava
um longo robe e portava um pesado tomo nos braços, me abraçou e me acalmou. Ainda
com o rosto molhado de lágrimas, terminei de contar a história.

Eu havia dito que precisava deles para matar um monstro, mas eu já não queria aquilo.
Eu queria salvação.

– Vocês podem? Podem salvar o meu marido?

Eles se entreolharam.

– O que acham? – Perguntou o homem de armadura de metal e espada e escudo nas
costas.

A elfa abaixou a cabeça e deixou escapar uma expressão de tristeza em seu rosto:

– O estágio está avançado demais. Agora, é irreversível.

Segurei as lágrimas.

– Como isso pôde acontecer? – perguntei sem querer aceitar os fatos.

A elfa hesitou, mas foi sincera:

– Provavelmente ele foi longe demais na floresta e deu o azar de encontrar uma fada
negra. Às vezes, elas conjuram magias de ilusão ou necromancia para assustar ou
machucar as pessoas. Às vezes, elas decidem se hospedar na vítima. A fada entrou pela
orelha ou pela boca dele e ele começou a se transformar num monstro. Agora, eles são
um só.

– Um troll... – Lamentei.

– Isso mesmo, um troll – ela confirmou.

Eu não sabia o que era necromancia, nem entendia nada de trolls. Apenas sabia que
monstros existiam e que eles matavam pessoas – e sabia que meu marido preferiria
morrer do que ser uma coisa dessas.

– Então, façam o que tiver de ser feito – declarei sem coragem de olhar para nenhum
deles.

Permaneci de olhos fechados e rosto virado. Logo, os aventureiros começaram a andar e
saíram da casa.

E eu chorei.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

3 - Galwin

Madrugada. Trezentos homens atrás de uma colina. Mais trezentos atrás dos muros fortificados. Três sargentos discutindo táticas.

- Temos aríetes e escadas - Elesehr Bjorn, o sargento da tropa de arqueiros, notificou.

- As escadas são dispensáveis, perderemos muito tempo e homens caso tentemos invadir por cima do muro. Precisamos derrubar o portão principal e invadir a cidadela com todas as nossas forças- Galwin Snow respondeu.

- Lá dentro, eles não terão a menor chances - Lothar, o bárbaro, estava ansioso.

- Nós não teremos chances se eles nos enfraquecerem antes de entrarmos. Minha unidade irá na frente em formação de tartaruga e um aríete.

- Formação o quê? - O bárbaro pareceu confuso.

- Escudos levantados sobre as cabeças dos soldados - o Bjorn esclareceu.

- Elesehr, você vai me dar cobertura. Garanta que qualquer homem que apareça nos muros receba uma flecha na garganta. Lothar, sua unidade virá logo após a minha, eu irei derrubar o portão e abrirei caminho para você entrar em carga. Todos entraremos na cidade, Lothar, eu e Elesehr, nessa ordem. Todos de acordo?

Elesehr estalou a língua.

- Perderemos muito homens, mas temos chances.

- É o que temos, sabíamos que estávamos em desvantagem desde o começo. Eles ainda não nos detectaram, teremos que atacá-los sem dar tempo de se organizarem para equilibrar as chances. Alguma sugestão melhor?

Ninguém se manifestou.

- Então, vamos. Minhas tropas marcharão dentro de dez minutos. Estejam preparados.

A cota de malha pesava sob os ombros do sargento bastardo. As botas eram lama pura. O escudo de metal parecia inadequado na mão direita para a maioria do guerreiros. A espada bastarda simplesmente fazia parte da mão esquerda.

- Homens! - Galwin mobilizou sua tropa. - Temos uma missão nesta noite! Iremos derrubar o portão e, depois, derrubar o invasor! Todos teremos as espadas sujas ao amanhecer e todos teremos bebidas e mulheres na próxima noite! Vamos! Vamos para nossa conquista! - e um urro se fez na noite. O sargento marchou e foi seguido por sua tropa.

Galwin não tentou ser discreto e nem conseguiria. Sua unidade estava a cerca de dois quilômetros de distância num terreno plano e de vegetação rasteira. Depois de dez minutos, tochas se agitaram de um lado para o outro no muro. Em vinte, uma meia dúzia de homens apareceram com arcos. Em trinta, mais alguns poucos surgiram e os soldados estavam a menos de cinquenta metros do portão.

- Formação tartaruga! - ordenou e foi obedecido.

Logo, flechas assobiaram pelo ar e encontraram o casco de escudos. Mesmo sem enxergar os homens atrás de si, Galwin percebia como eram inexperientes. Todos com os escudos erguidos sobre as cabeças, mas conforme andavam e se cansavam, iam esbarrando uns nos outros, empurrando e abrindo brechas para as setas matarem os incompetentes. Flechas encravaram nos escudos na primeira saraivada sem causar nenhum estrago, mas um gemido agonizante pôde ser ouvido na segunda . Quando chegaram ao portão, a segunda ordem foi dada.

- Abrir caminho para o aríete!

A maioria não ouviu, mas seguiram o exemplo dos homens das primeiras fileiras e abriram o corredor.

E a tora de madeira maciça veio com fúria contra o portão.

Logo no primeiro impacto, a madeira estalou e rachou. Nesse momento, pedras caíram do céu acompanhando as flechas. O sargento sentiu uma batida forte em seu escudo e quase deu um soco na minha própria cabeça, mas manteve a posição firme. Ele pôde ver um de seus homens distraídos observando o aríete receber um pedregulho no pescoço e cair esparramado no chão com a cabeça num ângulo disforme.

- Protejam o aríete! - Galwin gritou para evitar que matassem os homens encarregados da principal missão e para garantir a concentração dos demais. A defesa era precária, mas relevante.

O segundo impacto foi ainda mais intenso e espalhou rachaduras e brechas por toda madeira inimiga. A ponta de uma flecha perfurou o escudo do sargento e não atingiu seu antebraço por centímetros. Um cadáver despencou do muro com uma flecha na barriga e matou ridiculamente um dos homens do aríete, que foi prontamente substituído por outro entusiasta vibrante - a visão de dois corpos um em cima do outro era risível.

O terceiro impacto foi decisivo. Uma cratera enorme inutilizou a barreira e abriu caminho para a invasão. Os homens de fora gritavam em vitória precipitada. Os homens de dentro se mantinham firmes em suas posições.

- Abrir caminho para a tropa aliada!

As flechas e pedras pararam de cair. Agora, os inimigos se focavam na proteção interna e realmente precisavam de todos. A tropa de Galwin abriu caminho e logo a tropa de Lothar veio. Mais parecia uma turba bárbara como o sargento do que realmente uma unidade militar. Eles correram e entraram com as armas erguidas para o ataque e o bastardo torceu para que eles fizessem tanto estrago quanto barulho.

Enquanto a tropa do bárbaro avançava na vanguarda, o bastardo reorganizou a sua. Gritou, ordenou que os comandos fossem repassados, mas sabia que era impossível ter uma formação perfeita naquele momento - infelizmente, teria que contar com a inteligência da maioria. Enfim, deu-se por satisfeito e marchou para dentro da cidadela.

Não demorou para Lothar se mostrar imprudente. O capitão inimigo havia posicionado duas tropas na frente do combate e sua própria tropa na retaguarda. O bárbaro simplesmente investiu para o meio do campo de batalha e agora tinha sua tropa cercada pelas duas outras - e não demoraria para ter seus homens dizimados.

Galwin movimentou seus homens para o flanco esquerdo, pegando uma das tropas adversárias pela retaguarda.

Havia chegado sua tão esperada hora de derramar sangue.

Os soldados inimigos viram a chegada da tropa do bastardo, mas não souberam como reagir. Nem todos os homens combatem ao mesmo tempo, muitos ficam na retaguarda esperando sua hora de atacar e eram justamente esses quem o sargento mirava. Sendo assim, eles tinham a ordem de atacar um adversário, mas estavam vendo outro se aproximar e seu líder estava muito ocupado para perceber a aproximação e dar as ordens apropriadas - diversão garantida para o atacante. Com o escudo erguido, Galwin espetou a costela do primeiro inimigo, que caiu na mesma hora. Deu um passo, abriu um estômago e derrubou mais um. Outro passo, outra barriga vazando, outro corpo no chão. Com um bom avanço, parou e comandou antes que sua tropa perdesse a unidade e virasse uma bagunça.

- Manter posição! Manter posição!

Um soldado veio contra Galwin com a espada erguida num movimento completamente óbvio que encontrou o escudo e foi morto com a lâmina em seu tórax.

- Proteger o flanco - alguém gritou. Não foi possível ver quem, mas com certeza era um sargento em potencial, alguém que percebe uma necessidade de liderança e toma a dianteira. Alguém que precisava morrer.

A tropa do bastardo manteve uma formação aceitável e ele ordenou que voltassem a avançar. O nível de disciplina e treinamento da sua tropa e da inimiga era o mesmo: homens jovens, ansiosos e inexperientes. Mas ele estava atacando o flanco e não o fronte, ou seja, homens que não receberam ordem nenhuma, não tinham certeza do que fazer e, o pior, não tinham uma voz que comandasse, cada um tomava decisões diferentes, enfraquecendo a unidade. O desfecho daquela noite era incerto, mas aquela tropa estava fadada.

Galwin derrubou mais alguns adversários até encontrar o aspirante a sargento, garantir ter o seu cadáver no chão e pode seguir matando sem mais problemas. O sargento inimigo só se deu conta que estava sendo cercado quando metade da sua tropa já havia sido eliminada. Lothar surpreendeu mantendo metade dos seus homens vivos até aquele momento. Elesehr estava dando um suporte significativo com seus arqueiros e evitando que a tropa do bárbaro fosse morta.

Homens caíram e foram pisoteados por todos os lados e o bastardo garantiu que a maioria fosse do lado contrário ao seu. Lothar aproveitou o reforço, matou o sargento e agilizou o fim daquela tropa. O ideal seria juntar as duas tropas e terminar com a outra unidade inimiga

Mas a guarda pessoal do capitão Blacktide avançou contra Galwin.

- Barreira de escudos! - o bastardo berrou.

E as tropas se chocaram.

O sargento não sabia o nome do herdeiro vassalo dos Greyjoy, mas sabia que era ele que estava a sua frente. Ele pretendia usar sua tropa descansada contra a que já estava avariada e isso poderia significar o fim de Galwin - por mais que Lothar derrotasse a outra tropa, não sobrariam homens o suficiente para um reforço significativo e as flechas de Elesehr também não seriam um grande diferencial.

Só havia uma maneira de vencer aquela batalha.

- Desfazer formação! Atacar! Atacar a vontade! Matem todos! - Snow comandou e um urro de empolgação ignorante veio em seguida. O jovem Blacktide olhou incrédulo.

- Acabou de garantir a sua derrota.

- Não, acabei de garantir a sua.

Não havia chances de derrotar toda a tropa inimiga, mas havia chances de derrotar um único homem: o líder.

E o bastardo avançou e atacou. Seu primeiro golpe foi aparado pela espada inimiga, o segundo encontrou o escudo e o terceiro assobiou no ar. O Blacktide contra-atacou com seu escudo para abrir a guarda, empurrando Galwin um passo para trás e estocou, mas seu golpe foi evitado com a espada e a ofensiva foi retomada. O sargento forçou que seu inimigo recuasse um passo com um ataque impetuoso, outro com um encontrão de escudos e um terceiro ataque foi tentado, mas o nobre se concentrou na defesa e impediu qualquer avanço. Revirando o jogo, o Blacktide girou a espada na horizontal violentamente, esperando uma esquiva, mas Snow bloqueou com o escudo, mesmo quase se desequilibrando com o impacto. O inimigo aproveitou para atacar e era justamente o que Galwin queria - ele não se distraiu com o bloqueio, pelo contrário, prendeu a atenção do adversário para onde ele queria. A espada do herdeiro veio, o bastardo esquivou pela direita e desceu seu escudo no tornozelo do jovem herdeiro Blacktide. Um estalo doloroso se fez ouvir, seu rosto se desconfigurou em dor e seu corpo foi ao chão.

- Você conseguiu... - ele gemeu. - A vitória é sua... Sou seu prisioneiro.

- Eu não vim fazer prisioneiros.

A mão direita de Galwin encontrou o cabelo do herdeiro Blacktide e a lâmina encontrou sua garganta.

- O capitão Blacktide está morto! - o sargento bastardo urrou e todos os soldados aliados responderam em comemoração.

Alguns inimigos fugiram, outros se renderam, mas a maioria foi morta - Snow não aceitou nenhuma rendição e nem Lothar se apiedou de seus derrotados.

A euforia foi imensa e parecia inacabável. O combate foi dentro da cidadela, entre as casas, mas nenhum cidadão foi visto. Provavelmente, a maioria das família fugira para longe durante a madrugada antes da chegada das tropas, mas ninguém apareceu nem ao longe mesmo depois da vitória - quem estava perto provavelmente ainda estava com medo e escondido pelos casebres. Os homens queriam bebidas e mulheres, mas aquilo não era um saque e Galwin teve que detê-los. Prometeu mil recompensas para vários e até deu bronca em alguns, mas manteve o controle. Quando os nervos estavam menos exaltados, todos marcharam até o casarão dos Dorgauld.

Os servos dos Blacktide que guardavam a residência já haviam se rendido, todos desarmados e inofensivos como gado quando Galwin, Lothar e Eleserh chegaram. O sargento Snow permitiu que aqueles vivessem.

Os Dorgauld os receberam cheios de agradecimentos. Prometeram honrarias e presentes aos "salvadores". O povo os saudaria e um banquete seria realizado.

Eram heróis.

E o bastardo retornaria para seu tio de queixo erguido e teria sua maior recompensa: a aprovação de sor Arthur Bjorn e o ódio dos demais vassalos.

Mas, por hora, brindaria a vitória com seus comandados. Com sua própria tropa.

domingo, 5 de agosto de 2012

Encruzilhada


Foi uma longa viagem de Arena para Pena Dourada. Meu mestre me aguardava em seu templo e eu ainda tinha um dia de viagem pela frente. Fanfarra, meu cavalo, estava amarrado em uma árvore próxima a minha fogueira, enquanto eu terminava de acender os incensos para a minha meditação.

Sentei-me de pernas cruzadas a um metro da fogueira, sentindo o suor se formar em minha sobrancelha e o vento gelado soprar em minhas costas. Pousei minha espada em meu colo e permiti que o odor doce dos incensos entrasse em harmonia com o odor das árvores ao meu redor.

Inspirei uma vez. Lembrei de minha juventude ao lado de meu mestre, dos treinos com espadas, dos ferimentos causados pelo simples desacostume com uma armadura, das horas diárias de corrida, das palavras de sabedoria. Eu me orgulho do treinamento que tive. Orgulho-me de ser pupilo de um homem que atingiu o equilíbrio entre virtude e poder.

Inspirei mais uma vez. Ele me dizia que havia tido um pupilo parecido comigo, mas que havia se desvencilhado. Um pupilo com um grande potencial, mas impaciente e agressivo. Um pupilo que havia se perdido em vícios, se tornado um assassino sem escrúpulos, que acabou por ser expulso do templo.

Inspirei mais uma vez. “O que nós devemos ter antes de termos uma espada?”, meu mestre me perguntava. “Virtude”, eu respondia, como havia aprendido com ele. “E o que devemos ter enquanto empunhamos uma espada?”, meu mestre perguntava. “Virtude”, eu respondia com disciplina. “E o que devemos ter após uma batalha?”. “Virtude”.

Inspirei mais uma vez. Eu prometi ao meu mestre que me tornaria um guerreiro. Prometi que a morte nunca seria a minha finalidade. Em meus treinos, aprendi que a satisfação da luta está na auto-superação e na vitória, não no sangue derramado. Matar um criminoso ou um tirano é fazer justiça. Matar inocentes é vilania. Matar pelo prazer de tirar uma vida é permitir ser consumido por trevas.

Inspirei mais uma vez. Mas existe uma encruzilhada entre o caminho de um guerreiro e o caminho de um assassino. Meu mestre havia me avisado que seria inevitável passar por esta encruzilhada e que haveria alguém me esperando nela.

Eu perguntei se seria o seu ex-pupilo, mas meu mestre disse que não, que seu ex-pupilo já estava longe no caminho dos assassinos. Meu mestre me avisou que quem estaria me esperando na encruzilhada seria eu mesmo.

Fiquei confuso com a resposta, pedi explicação, mas a única coisa que ele me disse foi: “Quanto maior a sua luz, meu pupilo, maior será a sua sombra”.

Ouvi passos.

Abri meus olhos, empunhei a espada e me levantei. A fogueira estava em brasas e logo se apagaria por completo graças ao vento. O ar estava cada vez mais frio e incômodo. Os passos vinham em minha direção, pela frente – alguém queria ser percebido. Permaneci em silêncio, esperando para ver quem ousava interromper minha meditação. Fanfarra relinchou, agitado.

Vestia uma armadura de couro recoberta por peitoral, ombreiras, saiote, botas e manoplas de aço, empunhava uma espada longa na mão canhota e um escudo de metal na outra. Cabelos aparados, castanhos e queixo erguido, forte e orgulhoso. Encarei-o nos olhos, mas não vi nada, pois havia fendas no lugar dos olhos e, ao redor, seu rosto era quebradiço e com rachaduras. Mesmo sendo perturbador, vi que estava enganado, que havia algo nas cavidades, alguma essência, mas não consegui identificar o quê. Sei que não estava vazio por dentro, havia algo. Eu poderia dizer que estava diante de um espelho, exceto pelos olhos e, espero eu, pela essência.

Por muito tempo eu me questionei qual era o caminho de um guerreiro. Ainda não tinha a resposta, mas acho que havia chegado à encruzilhada.

Ele ergueu o escudo e a espada, exatamente como meu mestre havia me ensinado. Sem cerimônias, eu corri em investida. Ele bloqueou com o escudo e contra-golpeou com uma estocada. Girei em esquiva e descrevi um arco horizontal, mirando nas costas do meu adversário. Ele se agachou, pegou impulso nas pernas e estocou mais uma vez. Escapei por pouco, mas ele conseguiu abrir um corte na minha costela, embaixo da axila. Dei alguns passos para trás, recuperando a guarda. Ele sorriu.

Golpeei girando minha espada da esquerda para a direita em sentido vertical, mas ele deu um passo para trás, se esquivando e logo avançou. Bloqueei o primeiro golpe com o escudo, aparei o segundo com a espada, o terceiro acertou meu antebraço esquerdo, me fazendo largar a espada, o quarto acertou minha coxa direita, derrubando-me de joelho no chão.

Meu inimigo agarrou meu cabelo e encostou lentamente a sua espada na minha garganta. Posicionou com precisão. Ouvi um grito.

Senti um vento úmido e forte soprar em meu rosto, me fazendo abrir os olhos. Eu estava ajoelhado em meu acampamento. A fogueira e os incensos pareciam ter acabado de apagar. Fanfarra estava agitado. Não havia sido um sonho. Seja lá o que havia sido, não era um sonho. Mas de quem foi o grito?

- Mestre!

Arrumei minha mochila de viagem, montei em Fanfarra, arrebentei a corda que o prendia com a espada e pus-me a cavalgar. Sei que meu cavalo estava cansado, mas eu precisava alcançar o mestre o mais rápido possível. Eu sei que ele nunca estaria em perigo. Sei que nada era ameaça para ele. Mas algo estava errado e eu não podia ficar de braços cruzados.

O percurso que levaria mais um dia cavalgando, eu e Fanfarra fizemos antes de terminar a madrugada. Não consegui manter minha mente focada em nada positivo. Nunca havia saído tão agitado de uma meditação.

Assim que cheguei diante da escadaria do templo, amarrei Fanfarra em qualquer árvore e subi correndo pelos degraus. As árvores pelo caminho que costumavam ser tão vivas pareciam paradas e frias. A lua que costumava brilhar como prata estava cinza e agourenta. Ou talvez tudo estivesse normal e eu que estivesse mórbido.

Atravessei as pilastras cheguei ao portal do templo. Tudo estava em silêncio. Tudo estava imóvel. Quebrei a estabilidade da madrugada e abri o portal.

- Não... Impossível...

Em cada parede e em cada pilastra, havia uma marca de batalha. Vasos e estatuetas não eram mais do que migalhas espalhadas pelo templo. Na parede, ao fundo, havia uma estrela invertida de sete pontas desenhada em sangue e logo abaixo, no chão, jazia o corpo de meu mestre, assassinado.